O realizador de sonhos

Carlos Melancia, antigo governador de Macau, deixou-nos. No universo continuará a edificar obras fantásticas tal como fez na Terra. Fomos colegas de curso de engenharia e conheci bem Carlos Melancia. Um homem dedicado a tudo o que fazia, já não falando da família. Um dia, Mário Soares convidou-o para governador de Macau e quando fomos jantar para nos despedirmos disse-me que a tarefa não iria ser fácil porque o tinham elucidado sobre a realidade do território, onde quem mandava eram os chineses de Pequim. Acrescentou-me que se o território era chinês e a administração nossa, era natural que não fosse contrariar o que os chineses pretendessem desde que os portugueses que lá viviam não fossem prejudicados. Partiu, escreveu-me e disse-me que o trabalho não era fácil. Que o presidente da Assembleia Legislativa era simpatizante do CDS e que todos os que não fossem socialistas, como ele, estavam sempre a atirar-lhe à cara o militantismo socialista e que o objectivo deveria sacar o mais possível de dinheiro para a metrópole e especialmente para o Parido Socialista. Fiquei desolado pelo seu sofrimento e aguardei que se deslocasse a Lisboa para conversarmos melhor sobre tão nobre missão de se ser governador de Macau.
Carlos Melancia veio a Lisboa para dar conta ao Presidente da República, Mário Soares, de como as coisas estavam a correr em Macau. Naturalmente, que fomos jantar e das 20:30 às 02:00 horas só falámos de Macau. Explicou-me que o vice-almirante Almeida e Costa, ex-governador, tinha muita razão em querer dar andamento a projectos importantíssimos e necessários para o desenvolvimento do território. Era preciso modificar as estruturas básicas: a electricidade, a água, o saneamento básico, os telefones, um aeroporto, um porto e as necessárias instituições para o apoio social. Fiquei banzado com tanta necessidade orgânica e material que Macau não possuía. Perguntei a Melancia se ele sentia forças e apoio local para avançar com os projectos. Respondeu-me que tudo faria para que Macau fosse um território digno e que Portugal saísse um dia de Macau deixando uma obra memorável.
A verdade é que a pouco e pouco fui sabendo que as ideias do meu colega engenheiro estavam a dar frutos e que ele estava a revolucionar as inexistentes estruturas e que a população de Macau tanto ambicionava. A companhia de electricidade foi imensamente renovada e o serviço da empresa até ao presente tem recebido os maiores encómios. A companhia dos telefones passou a servir a população de uma forma nunca vista e quando chegou a era dos telemóveis e da internet Carlos Melancia já tinha edificado a estrutura para um bom serviço generalizado. Foi construída uma ETAR de nível mundial. A companhia das águas viu a assinatura de um acordo com os franceses, se não estou em erro, e Macau passou a ter nas torneiras água de qualidade. Melancia tinha-me salientado que o aeroporto era fundamental para que as exportações de Macau triplicassem e as ligações aéreas com Portugal e o mundo fosse uma realidade. Na conversa que mantivemos em Lisboa, Carlos Melancia referiu que se tinha comprometido com empresas norte-americanas que lhe garantiram a construção do aeroporto. Eis o ponto final de Carlos Melancia, o maior empreendedor de Macau. No interior do Partido Socialista existia um lóbi que já tinha acordado que o aeroporto seria construído por empresas alemãs. Quando esse lóbi transmitiu a Melancia que deveria aceitar a negociação com os alemães, eis que o governado rejeitou de imediato a pretensão e respondeu que tinha um compromisso com norte-americanos. O lóbi era tenebroso e fortíssimo e logo imaginaram uma forma de destruir Melancia.
No hotel Garcia da Horta que Melancia veio a construir em Castelo de Vide com o apoio financeiro de uma personalidade residente em Macau, depois de se ter demitido de governador contou-me que sempre foi sério, que tinha a certeza que era o ex-governador que menos dinheiro tinha trazido de Macau. Que o fax enviado para o jornal Independente tinha sido uma cabala bem montada para o destituir do cargo. Acrescentou-me que Mário Soares cortou relações com a maioria dos membros desse lóbi que enviaram o fax dizendo que o governador Melancia tinha sido um corrupto e recebido uma ninharia de 50 mil contos.
Em Lisboa, soube que os chineses se riram da verba que tinha sido indicada no tal fax. Realmente, uma ninharia para a observância de muitos chineses milionários de Macau que sabiam quanto dinheiro tinham recebido outros ex-governadores. Carlos Melancia foi enxovalhado injustamente perante as sociedades macaense e portuguesa. Ficou sempre com o cutelo no pescoço como tendo sido um governador imensamente corrupto. Nada mais falso.
É do conhecimento de muitos políticos que Melancia era um homem sério, engenheiro de excelência e realizador dos seus sonhos. Contaram-me inclusivamente que Carlos Melancia recebeu no Palácio do Governo um grupo de aventureiros que pretendiam realizar o trajecto, em jipe, entre Macau e Lisboa. E que foi Melancia que contactou com os administradores da marca de jipes UMM e que conseguiu três carros para que a expedição se realizasse como veio a acontecer e que no regresso desses aventureiros decidiu condecorá-los com a Medalha de Mérito Desportivo. Um homem destes não merecia o que lhe fizeram. Na hora da sua morte senti-me obrigado, como seu amigo, a escrever estas linhas esclarecedoras de uma verdade escondida e deturpada.

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Jorge
4 Nov 2022 03:01

Este rapaz gosta muito de escrever tangas!