Biden contra Biden

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O mundo está já habituado ao facto dos Estados Unidos da América (EUA) raramente cumprirem a palavra dada no que toca ao cumprimento das promessas feitas e dos compromissos alcançados em termos de relações internacionais.

Assim se passou quanto à expansão da OTAN para Leste na Europa, quando do desmembramento da União Soviética, e não podemos deixar de pensar ter existido um dedo americano no incumprimento dos tratados de Minsk por parte dos governos da Ucrânia, resultantes do golpe de 2014, claramente apoiado e suportado pelos EUA. O resultado foi o que se sabe: a invasão russa e um conflito armado que pode desembocar num apocalipse.

A OTAN, que ainda hoje se apresenta, descaradamente, como uma aliança unicamente vocacionada para a defesa no caso de ataque inimigo, não se coibiu de bombardear a Sérvia, a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, entre outros, com os resultados conhecidos. Depois da II Guerra Mundial não consigo encontrar um caso de intervenção militar americana que tenha, de algum modo, melhorado a vida dos cidadãos desses países e muito menos aportado “direitos humanos e democracia”, talvez com excepção da Coreia do Sul, um país onde, contudo, existe um tremendo fosso social, cultural e económico entre ricos e pobres, poderosos e destituídos, como se pode constatar, por exemplo, no filme “Parasitas”, galardoado com um Oscar, ou num tom mais sério e radical na obra do cineasta Kim Ki-duk.

Contudo, as mentiras de um país como os EUA encontram, geralmente, actores diferentes, políticos que renegam o que foi dito pelos seus antecessores, procurando desse modo desculpas esfarrapadas e, mais grave ainda, elevando a níveis preocupantes a desconfiança que a comunidade internacional sente face ao que é um dos países militarmente mais poderosos do mundo e cujo regime tem o dislate de se apresentar como o “fim da História”.

Curiosamente, no domingo passado assistimos a um espectáculo diferente. O presidente Joe Biden, ao proferir que os EUA interviriam militarmente caso a China decidisse invadir a ilha de Taiwan e unificar de vez o país, não apenas contraria o que tem sido afirmado pela diplomacia americana, como renega o que ele próprio afirmou num artigo por si assinado em 2001.

Recordemos os factos e o contexto. Nessa altura, era presidente dos EUA o republicano George W. Bush, o homem que ordenou a invasão ilegal do Iraque com o pretexto de encontrar as armas de destruição massiva que nunca existiram. Bush foi questionado se os EUA teriam a obrigação de defender militarmente Taiwan no caso de um ataque vindo do continente. A sua resposta foi: “Sim, temos. E os chineses têm de perceber isso. Sim, eu teria (essa obrigação)”. E prosseguiu afirmando que faria “o que fosse preciso”, nomeadamente empregar “toda a força do exército americano”, para ajudar Taiwan a defender-se desse eventual ataque.

Ora o então senador Biden criticou fortemente o presidente americano, num artigo intitulado “Not so deft in Taiwan”, publicado no Washington Post, onde começava por afirmar que “as palavras contam (matter), em diplomacia e na lei” e, apesar de reconhecer que “algumas horas mais tarde, o presidente apareceu para se distanciar deste novo e surpreendente compromisso, sublinhando que continuaria a seguir a política de ‘uma só China’ seguida por cada uma das últimas cinco administrações”, Biden remata que “onde outrora os Estados Unidos tinham uma política de ‘ambiguidade estratégica’ – sob a qual nos reservávamos o direito de usar a força para defender Taiwan mas mantínhamo-nos calados sobre as circunstâncias em que podíamos, ou não, intervir numa guerra através do Estreito de Taiwan – agora parece que temos uma política de ‘ambiguidade estratégica ambígua’. Não se trata de uma evolução positiva”.

E continua aquele Biden de 2001:

“Como questão de diplomacia, existe uma enorme diferença entre reservar o direito de usar a força e obrigar-nos, a priori, a vir em defesa de Taiwan. O presidente não deve ceder a Taiwan, muito menos à China, a capacidade de nos atrair automaticamente para uma guerra através do Estreito de Taiwan. Além disso, para cumprir a promessa do presidente, quase de certeza que queremos usar as nossas bases em Okinawa, Japão.

“Mas não há provas de que o presidente tenha consultado o Japão sobre uma expansão explícita e significativa dos termos de referência para a Aliança de Segurança EUA-Japão. Embora a aliança preveja operações conjuntas nas áreas circundantes do Japão, a inclusão de Taiwan nesse âmbito é uma questão da maior sensibilidade em Tóquio. Sucessivos governos japoneses têm evitado ficar presos a esta questão, por medo de fracturar a aliança.

“Por uma questão de lei, as obrigações e políticas são também mundos à parte. O presidente tem ampla autoridade política no domínio da política externa, mas os seus poderes como comandante-em-chefe não são absolutos. Nos termos da Constituição, bem como das disposições da Lei das Relações de Taiwan, o compromisso das forças dos EUA para com a defesa de Taiwan é um assunto que o presidente deve levar ao povo americano e ao Congresso.”

Mais palavras para quê? Afinal, que Biden devemos levar a sério, o de 2001 ou o de 2022? Estará o actual presidente dos EUA a ser de tal modo pressionado pelos falcões ansiosos de guerra (o complexo industrial-militar), que descamba em declarações como as do passado domingo, e não terá a capacidade interior de lhes resistir, ainda que tal agudize a instabilidade que actualmente reina na cena internacional? Será que Joe Biden realmente existe e exerce o poder ou não passa de uma marioneta, cujo papel se resume a recitar o texto que outros lhe escrevem?

As atitudes recentes dos EUA em relação em Taiwan parecem querer provocar a intervenção militar do continente que, legitimamente, aspira à unificação da China e que não poderá admitir mais passos no sentido da independência da ilha. Por enquanto, Pequim tem demonstrado que prefere uma solução pacífica do problema e nem sequer estabeleceu um calendário definitivo para a reunificação. Contudo, se as provocações americanas continuarem e encontrarem eco em Taipé, o caso poderá mudar rapidamente de figura.

Talvez Biden consiga convencer Biden de que a sua actual posição é profundamente errada e perigosa para esta região e para o mundo em geral. E que Biden consiga conter os ímpetos belicistas, hegemónicos e neocolonialistas de Biden. O mundo espera para ver qual dos Biden aparecerá a seguir nos ecrãs de televisão e qual o guião que desta vez escreveu ou lhe deram para ler.

Talvez Biden compreenda que a humanidade deve seguir o caminho da paz e os EUA adoptem uma política de não-interferência nos assuntos internos de outros países ou, pelo contrário, Biden acirre mais os conflitos na cena internacional e nos conduza a todos à desgraça. É que, como diria Jim Morrison, não vale a pena ter ilusões: “Daqui ninguém sai vivo”.

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