Prestidigitação

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Conhecemos entre nós o de Mário Cesariny, chamado de «Manual de Prestidigitação» deste poeta e pintor, que as mãos trazidas da sua competência nunca deixaram a componente subversiva que estimulou este representante do nosso surrealismo, o que faz não poder ficar entre as mandíbulas dos escrutinadores, pois que se atravessa nele um longo ditirambo que é a sua anti-lírica nunca menor que a própria lírica.

Aliás, o livro compõe-se de quatro partes, sendo a que dá origem ao título, a quarta e a última, talvez alinhando no pensamento de que os últimos são os primeiros, e que surpreendentemente diremos se tratar ainda da mais lírica. «É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia… é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano… é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora» e talvez seja aqui que transporte nas mãos a sua própria deidade.

Mas o modelo da memória reflecte um outro prestidigitador, Jacobo Sureda, também ele poeta e pintor, autor de «El prestidigitador de los cinco sentidos», que constrói no Manifesto Ultraísta (movimento literário espanhol em oposição ao modernismo dominante do final do século XIX) um grande axioma das suas convicções: «Nosso credo é não ter credo. Não pretendemos rectificar a alma, nem mesmo a natureza. O que renovamos são os modos de expressão». É desta insubordinação de quem se opõe, reinventa e caminha, de que falamos, que ser contra tal movimento não significou estar mais atrás, ou somente atrasado face ao seu presente- não-!

Jorge Luís Borges e Sureda assinam um destes manifestos em 1921, que Borges levará para a Argentina. São escritores que vivem muito da produção em revistas, panfletos, agrupamentos dinâmicos de pensamento… são gente que ao estarem juntas se prodigalizam. Aliás, Cesariny herdou ainda esta via, os debates em cafés, tertúlias e boémia, conjugaram-se nos seus alicerces muito férteis.

E agora talvez seja tempo de perguntar o que têm em comum estas duas prestidigitações; diremos que bastante (se nos debruçarmos no Manifesto Futurista, também) mas é a novidade imposta em empreender novos balanços semânticos com total liberdade narrativa, pouco descritiva, que nos prende a tal métrica como se estivéssemos mais perto da telepatia, que o poema oferece uma abertura de espectro de tal forma improvável que ficamos limpos da razão bloqueadora que têm as sensíveis demonstrações anãs, exactamente por que se pensa e mede com a fita métrica dos impasses conhecidos. – Aqui não há nada disso! Talvez se pense que estejamos mais perto da reverberação que dê ao poeta sinónimo de louco, que ternamente as gentes dizem que têm deles um pouco. Não têm nada! E aqui nenhum louco entra pois que o infecundo distúrbio não chega para aguentar tais invitações, que nascem de um ainda estonteante poder criativo.

Se há efectivamente um aspecto antipático no chamado “criativismo” é essa coisa insalubre do chamado plágio, e aí, a loucura ganha, pois que se assemelha quase sempre de forma arrepiante…! Que um doido, imita outro doido, e o que acontece? Nada. E a acontecer é sempre coisa má. Se tinham estes dois poetas pintores vasos comunicantes?

Sem dúvida que é uma possibilidade válida. Mas mesmo assim, se Cesariny, homem raro, que teve como vida o ser poeta e pintor, e tudo o mais que a sua capacidade mantinha, conhecesse como à palma da sua mão Jacobo Sureda, isso só o engradecia. Como a Humanidade é cada vez maior, ela replica, e que bom seria ficar-se só por estes casos!« El religioso mar/ como una hostia azul/ Está en el paladar/ Del cielo y horizonte….»
PRESTIDIGITACION
e
«Pomo-nos bem de pé, com braços muito abertos/ e olhos fitos na linha do horizonte/ depois chamamo-los docemente pelos nomes/ e os personagens aparecem»
ARTE DE INVENTAR PERSONAGENS. In Manual de Prestidigitação.
Pode um choque atravessar as nuvens num instante, diluindo a conveniência? Eles dizem-nos que sim, que neste afã se registaram tais sinais.

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