Poemas da preguiça e do vinho

DR

Li Bai, grande poeta da dinastia Tang, traduzido e anotado por António Izidro

Sentado sozinho na montanha Jingting
Um bando de aves nas alturas do céu,
uma nuvem espreguiça-se solitária.
Nunca o nosso olhar se farta do outro:
eu e a montanha Jingting.

Verão na montanha
Indolente agito o meu leque de alvas plumas,
de tronco nu me obrigo à verdura da floresta,
mas quando tiro o turbante e o poiso numa rocha,
uma brisa de pinho esfria o orvalho na minha testa.

Olhando a Lua depois da chuva
Nuvens e névoas se dispersam,
abro a janela e dou por meia Lua sorrateira.
Campos longínquos, nublados,
cruzados por rios de seda pura.
A Lua clareia a serra curva a meia altura;
inunda de luar o mar quando ascendia;
sofrerei se este aro abandonar
e por isso velarei até ser dia.

Bebendo sozinho ao luar
Entre as flores, um jarro de vinho,
levanto a taça, bebo sozinho.
Convido a Lua, é a sua vez,
com a minha sombra já somos três.
A Lua não sabe o vinho beber
e a sombra só faz o que eu fizer.
Tenho estes dois por companhia,
noite de Abril, plena alegria.
Canto e a Lua ouve o meu cantar,
danço e a sombra segue o meu dançar.
Folguemos unidos até aguentar,
pois depois o sono vai-nos separar.
Ó peregrinos sem alma de meu vazio festim,1
na Via Láctea faremos uma outra festa sem fim!

1. Peregrinos sem alma Não obstante a momentânea alegria que trouxeram, a Lua e a sombra são assim tratadas pelo poeta por não perceberem a sua solidão. Pode-se ler nos versos um conceito paradoxal, em linha com a filosofia budista sobre o criar e o desconstruir; em que, se por um lado se constrói, logo algo é desconstruído, desta destruição nasce seguidamente uma nova criação. É assim que o poeta quebra a solidão construindo a presença dos “companheiros”, realidade que logo se desvanece, quando no fim cada um segue o seu caminho; a partir desta separação, o poeta reconstrói a amizade, profetizando encontros perenes na eternidade celeste.

Não amasse o Céu o vinho…
Não amasse o Céu o vinho e nele não haveria
Estrela de Vinho remota.
Não amasse a Terra o vinho e nela não haveria
fontes de onde o vinho brota.1
Ora se à Terra e ao Céu o vinho tanto agrada,
a tudo o que é divino, o meu grande amor ao vinho
por certo não é maçada.
Fluído, cristalino vinho, para virtuoso beber,
e vinho turvo e espesso para letrado entreter:2
Se doutos mestres dele gostam e de bom grado o aceitam,
para quê perguntar aos deuses se por acaso o rejeitam?
Já vou na terceira taça quando dou por mim na Via,
com uma “medida” emborcada a Natureza me guia.
Ó gáudio tão desmedido que do vinho se retém,
alegria rutilante que o homem sóbrio não tem!

1. Fontes vinícolas. A analogia entre o vinho e as fontes de uma região de onde brotava água tão doce como o vinho.
2. Vinho cristalino e vinho turvo. Um é coado, refinado, o outro não; pelo facto de no culto aos ancestrais ser oferecido apenas o vinho puro, a tradição manda que aos virtuosos seja servido vinho cristalino e aos letrados o vinho turvo.

In António Izidro, “Li Bai – A Via do Imortal”, Livros do Meio, 2022

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