Gina Rangel: “Nunca houve problemas como hoje”

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Fundadora da Ludwig’s Legacy, associação dedicada à protecção dos animais, e membro influente da comunidade macaense, Gina Rangel questiona a competência das autoridades para tomar decisões “exageradas”, que colocam em risco a saúde de pessoas e animais. Sobre a comunidade macaense, aponta que “tem de ter a coragem” de lutar por Macau e ser frontal na relação com o Governo

 

Tendo vários cães e enquanto fundadora de uma associação de protecção dos animais, como tem encarado os constrangimentos impostos pelo confinamento parcial de Macau?

Tem sido uma absoluta frustração, porque os meus cães não conseguem fazer as necessidades em casa. Mesmo que lhes ponha fraldas é impossível. Além disso, é preciso dizer que, em Macau, as pessoas com uma certa idade, como eu, já passaram por outras doenças graves como a cólera, febre tifoide e varíola e conseguimos sobreviver, com as devidas precauções, claro. Depois de ter passado por isto tudo, devo dizer que nunca houve semelhante exagero [como agora]. Estas medidas são absolutamente desproporcionais e, passados dois anos [com a mutação do vírus e o acesso às vacinas], a covid-19 não passa de uma forte gripe, muito mais transmissível que as primeiras estirpes. Em princípio, não mata ninguém e, dada a alta transmissibilidade, o facto de o Centro de Coordenação de Contingência dizer que quer chegar aos zeros casos, é utópico. Em nenhum lado isso foi possível e, hoje em dia, já ninguém fala da gripe, tudo é covid-19. Até parece que as pessoas deixaram de morrer de cancro ou de outras doenças. As medidas que interferem com a normalidade da vida dos cidadãos devem ser proporcionais e estas não são.

Como tem sido a logística de cuidar dos animais quando é proibido sair de casa para os passear?

Tenho três filhotes, com 15, 10 e 7 anos. Já fui apanhada quatro ou cinco vezes pela polícia quando os fui passear. Quando eles passam, assumo a situação e aproximo-me para falar a bem. Se calhar eles também não têm prazer em estar a fazer isto e alguns também têm animais, mas têm de obedecer a estas regras desproporcionais. As autoridades têm certamente coisas mais importantes para fazer. Também nesse sentido, médicos e enfermeiros que estão aí nos centros dos testes em massa, andam muito cansados. Conheço o caso de uma pessoa que durante dois ou três dias trabalhou 16 horas diárias, para dar apoio às testagens. Por isso, além de o Centro de Coordenação não se interessar pelo bem-estar dos animais, tem de ter em consideração o bem-estar da população de Macau. Para eles é fácil, mas será que trabalham assim tantas horas como os outros que andam aí?

O que pode ser feito para ultrapassar esta situação?

Acho que é preciso insistir com o Governo sobre esta questão, porque eles não querem saber dos animais. Pergunto mesmo: será que algum dos representantes que estão na conferência de imprensa tem animais em casa? Julgo que não. Gostam de animais? De certeza que não. Além disso é preciso dizer que, segundo o Centro de Controlo de Doenças dos Estados Unidos, os animais praticamente não podem ser infectados com covid-19 ou transmitir a doença. A percentagem de transmissão é quase nula. Garanto que nenhum dos representantes do Governo procurou averiguar essa questão a fundo. Fruto desta situação, alguns dos animais acabam por ficar desesperados, porque não aguentam mais tempo sem fazer as suas necessidades. Tenho amigos que me contam que os animais aguentam mais de 10 horas sem fazer as suas necessidades e isto não é saudável. Até podem morrer. Tanto veterinários, como nas petições que começaram a circular, já se falou que impedir os animais de ir à rua só faz mal. Nas sociedades que respeitam verdadeiramente os direitos dos animais nunca foi proibida a saída dos cães durante os confinamentos. O meu lema é “viver e deixar viver”, mas quando alguém, agride os direitos dos que não têm voz, ou seja, idosos, bebés e animais, sinto-me na obrigação de reagir.

O prolongamento do confinamento parcial veio piorar ainda mais a situação…

Sim, estou muito preocupada. O prolongamento do confinamento parcial e a intransigência em relação aos passeios dos cães demonstrou, uma vez mais, a ignorância do Governo em não querer saber mais sobre a baixa transmissibilidade da covid-19 nos animais. Isto só mostra que não gostam de animais. Será que querem matar todos os cães de Macau? Depois de a população demonstrar descontentamento em relação à medida, o Governo não voltou atrás e o secretário para a Administração e Justiça, André Cheong, que eu considero muito inteligente, não deu qualquer resposta quando foi questionado. Não se percebe porque não querem ajudar os animais. Podiam simplesmente dizer que os animais podem sair por um curto período de tempo só com os donos, mas as pessoas não se podem juntar. Ou seja, se duas pessoas que vão passear os cães se encontram na rua, isto é considerado perigoso, mas quando vamos fazer os testes em massa, onde estão centenas de pessoas, deixa de o ser. Outra questão são os animais que estão em edifícios classificados como zonas vermelhas. Será que o canil do IAM tem espaço para todos? Além disso, será que estas restrições todas não vão fazer com que as pessoas acabem por abandonar animais? O canil é pequeno, não tem espaço suficiente e tem animais que estão à espera de ser adoptados, sendo provável que acabem por ser abatidos de forma a arranjar espaço para outros que pretendem ir para lá e têm de pagar pela sua estadia.

Está surpreendida com a forma como o Governo tem comunicado com a população?

Sim, ultimamente fiquei desconcertada quando, passados dois anos, a médica [Leong Iek Hou], veio ensinar as pessoas a desinfectar as compras e a limpar os legumes e as hortaliças. Tenho 70 anos e, desde que sou gente, lembro-me que, sempre que as nossas empregadas chegavam a casa das compras, a primeira coisa a fazer era limpar tudo, até porque, nessa altura, não havia frigorífico. Agora, passados dois anos, vêm ensinar estes cuidados de saúde à população? Para mim, isto demonstra incompetência. Além disso, pelo que tenho ouvido nas conferências de imprensa, hoje em dia, a qualidade dos serviços de tradução deixa muito a desejar. Numa altura em que é essencial informar as várias comunidades de Macau sobre as medidas a adoptar, torna-se necessário aumentar a qualidade das traduções. Se pessoas como eu ficam confusas por não perceber o que está a ser traduzido, isso é um factor de ansiedade que não ajuda à manutenção da calma e do espírito de cooperação que todos temos de ter para ultrapassar este momento difícil.

Tendo vivido sempre em Macau, como considera que a população, em geral, e a comunidade macaense, em particular, está a atravessar esta fase?

Sinceramente tenho tido pouco contacto com as pessoas, mas tenho amigos de todas as etnias. O que digo neste momento é que a maioria das pessoas de Macau, em particular os macaenses têm de ter a coragem de se expressar. Reforço que, quando digo macaenses, incluo as famílias chinesas de Macau. Eles amam Macau tanto quanto os macaenses, no sentido estrito da palavra. Muitos deles dependem dos apoios do Governo, como os próprios jornais, aliás. Eu entendo essa parte, mas impressiona-me que se ande a dar o “amén” a tudo o que o Governo faz. Nunca esperei ver a comunidade macaense assim. Hoje em dia, temos cá muitas pessoas que nada sabem de Macau e que vêm só para trabalhar e, portanto, ninguém quer saber. Ou seja, vão andando enquanto há comida e o Governo lhes dá subsídios. Estes eu ainda percebo, mas a comunidade macaense… não devíamos lutar pela nossa terra e pela nossa história? Já passámos por tanta coisa. No entanto, nunca houve problemas como os de hoje. A comunidade macaense tem de ter a coragem de se expressar. Não precisamos de fazer demonstrações ou sair à rua, basta cada qual dizer a verdade ao Governo e eles hão-de perceber que estão a exagerar.

À luz do que tem acontecido ao longo do confinamento, acha que o Governo não se interessa pela saúde mental da população?

Sinceramente, acho que sacrificam a vida das pessoas para além daquilo que é razoável e necessário. Com o arrastar das proibições é a sanidade mental que fica afectada. Há suicídios na comunidade, mas já se viu alguém do painel da conferência de imprensa a falar disso? Volto ao que disse atrás, não existe um bom equilíbrio entre prós e contras em termos das medidas a aplicar e acabam por ser desproporcionais.

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Teresa Nolasco
Teresa Nolasco
20 Jul 2022 14:50

Estou parva como as pessoas são tão ‘pacíficas’ que aguentam este sofrimento dos animais obedecendo a ordem desumanas, violando direitos básicos em prol apenas de manter números para o espectáculo mundial. COVID já passou gente! A vida continua, e os vossos direitos foram retirados acordem! O dinheiro não é tudo, hoje são os animais amanhã?

Teresa Nolasco
Teresa Nolasco
20 Jul 2022 23:12

Mais vale ser cordeirinho e dizer amem! Pfff