Leituras

18/05/22
A necessidade de reler a Odisseia faz-me vasculhar na net. Fico deliciado com a capa que reproduzo na imagem. É a mais bela capa de todas as edições que conheço da Odisseia. Por dentro, como era comum na Cosac Naify, a paginação corresponde. Só tenho a elogiar, do ponto de vista gráfico. O longo prefácio também me parece bastamente informado. Mas passo para o texto do Homero e sai isto:
«Do varão me narra, Musa, do muitas-vias, que muito
vagou após devastar a sacra cidade de Troia.
De muitos homens viu urbes e a mente conheceu,
e muitas aflições sofreu ele no mar, em seu ânimo,
tentando garantir sua vida e o retorno dos companheiros.
Nem assim os companheiros socorreu, embora ansiasse:
por iniquidade própria, a deles, pereceram,
tolos, que as vacas de Sol Hipérion
devoraram. Esse, porém, tirou-lhes o dia do retorno.
De um ponto daí, deusa, filha de Zeus, fala também a nós.»
Compare-se com o mesmo trecho, na tradução de Frederico Lourenço:
«Fala-me, Musa, do homem versátil que tanto vagueou,
depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada.
De muitos homens viu as cidades e a mente conheceu;
e foram muitas no mar as dores que sofreu em seu coração
para salvar a vida e o regresso dos companheiros.
Mas nem os companheiros salvou, embora o quisesse.
Pereceram devido às suas próprias loucuras,
tolos, que o gado de Hiperíon, o Sol,
comeram; e este lhes negou o dia do regresso.
Destas coisas, a partir de um ponto qualquer,
ó deusa, filha de Zeus, fala-nos também a nós.»
Nem sequer comento qual a que vou ler.

20/05/22
Incrédulo, volto atrás, gaguejo, releio:
«Juan Carlos, monarca del Estado español, impuesto como gobernante aunque hoy sea más bien una figura decorativa, nos ha salido con que “nunca fue la nuestra lengua de imposición, sino de encuentro; a nadie se obligó nunca a hablar en castellano: fueron los pueblos más diversos quienes hicieron suyo, por voluntad libérrima, el idioma de Cervantes”.
Uff. El dislate es, literalmente, regio.».
De facto. Há sempre um pequeno colonialista que nos habita a sombra e que mete a cabeça de fora e os seus irreais à primeira oportunidade.

21/05/22
Sergei Loznitsa, o realizador ucraniano que se demitiu da Academia Europeia de Cinema (a 28 de Fevereiro) pela posição tímida à invasão da Ucrânia pela Rússia, foi agora expulso da Academia de Cinema da Ucrânia por ter manifestado o seu apoio aos cineastas russos e ser insuficientemente leal ao seu país de origem.
Loznitsa fez os filmes mais esclarecedores quanto à farsa dos argumentos russos sobre Donbasse e Maidan, mas a sua utilidade não foi reconhecida por simplesmente lembrar, justamente, que a cultura russa não é o Putin. Foi então acusado de ser um “cosmopolita”.
É vergonhoso e absurdo – a prova evidente de que a guerra nivela tudo e que a sua duração só promove uma irracionalidade que passa a operar em 360º. Talvez um excerto de um poema de Tomas Transtömer seja o melhor comentário: «Os portões altos fecham-se novamente/ Eis-nos dentro do pátio da prisão/ Numa nova temporada».

23/05/22
Extraordinária, a biografia de Marina Abramovic (Pelas Paredes, Editora José Olympio, 2017). Mesmo para alguém, como eu, que mantém uma reserva em relação à prática artística que circunda as “instalações” e as “performances”, é inevitável que o livro desperte um extremo respeito pela senhora. É, além do mais, uma narradora nata:
«A fixação de Danica (a mãe) pela ordem penetrou no meu inconsciente. Eu costumava ter um pesadelo recorrente sobre simetria – que era extremamente perturbador. Nesse sonho estranho, eu era uma general que passava revistando uma enorme fileira de soldados, todos perfeitos. De repente, eu tirava um botão do uniforme de um deles, e toda aquela ordem desabava. Eu acordava num pânico total, tamanho era o pavor que tinha de destruir a simetria das coisas.»
Este sonho é claramente inventado, surgiu-lhe das amiudadas leituras de Marina das parábolas sufis, mas encaixa à perfeição.
E a dado momento Marina conta-nos a história espantosa do encontro entre
Tsvetaeva e Pasternak, que escreviam sonetos um para o outro, ela em Moscovo, ele em Paris, e sobre o destino trágico da poeta:
«E então, como era casada com um russo-branco que fora encarcerado pelos comunistas, ela teve de deixar a Rússia com seus dois filhos pequenos. Foi para o sul da França, mas seu dinheiro acabou, e precisou voltar para a Rússia.
Tanto ela quanto Pasternak decidiram que, depois de quatro ou cinco anos dessa correspondência apaixonada, ela faria uma parada na Gare de Lyon em Paris, no caminho de volta para casa, e eles de fato se encontrariam pela primeira vez.
Quando acabaram se encontrando, ambos estavam num nervosismo terrível. Ela carregava uma velha mala russa, tão cheia de pertences que estava estourando. Ao ver sua dificuldade para fechar a mala, Pasternak saiu correndo e voltou com um pedaço de corda. Amarrou e fechou a mala.
Agora, os dois estavam simplesmente sentados ali, mal conseguindo falar. Seus escritos os tinham levado tão longe que, quando eles se viram de fato na presença um do outro, as emoções eram avassaladoras. Pasternak disse-lhe que ia comprar cigarros. Foi embora e não voltou. Tsvetaeva ficou ali sentada, esperando, esperando, até que chegou a hora de embarcar no trem. Pegou a mala consertada com a corda e voltou para a Rússia.
Ela retornou a Moscou. Seu marido estava preso. Tsvetaeva não tinha dinheiro. E, assim, foi para Odessa. Lá, desesperada para sobreviver, escreveu uma carta para o clube de escritores, perguntando se poderia trabalhar para eles como faxineira. Eles responderam que não precisavam dos seus serviços. Então ela pegou a mesma corda que Pasternak tinha usado para consertar a mala estourada e se enforcou.»
O poder, por aquelas paragens, nunca mereceu os seus artistas.

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