Ainda não mataram a cultura

O tempo de confinamento devida à pandemia causada pela covid-19 deixou um grande número de portugueses sem trabalho. Mas, as mulheres e homens das artes foram os que mais sofreram. Os concertos musicais onde trabalham artistas, músicos, técnicos de som e de iluminação, produtores, motoristas dos camiões que transportam o material, operadores de câmara, editores de vídeo e todos aqueles que se envolvem trabalhando para o espectáculo ficaram radicalmente sem ganha-pão. Caso idêntico aconteceu com o mundo do teatro e cinema.

As editoras começaram a responder aos escritores que tudo estava parado. Um amigo nosso da Sociedade Portuguesa de Autores transmitiu-nos que muitas obras estavam escritas e prontas para serem lançadas, mas que as editoras têm tomado algumas atitudes que só prejudicam os escritores. As pessoas das artes em geral protestaram e apelaram ao Governo que os ajudasse. O apoio foi praticamente nulo, com excepção para o programa Protege da Câmara Municipal de Lisboa.

A cultura em Portugal está cada vez mais desprezada e o que interessa aos governantes são os aeroportos, os TGV’s, as barragens e que hajam muitos empresários a edificarem hotéis para os turistas. A cultura para quem governa é algo semelhante a uma sanita. Mas, felizmente, ainda há quem lute em defesa dos valores culturais e organize eventos que incentivam os escritores e premeiam as suas obras. Foi o caso exemplar do evento Correntes d’Escritas que se realizou, mais uma vez, no final do mês passado, na Póvoa de Varzim.

Correntes d’Escritas é uma lufada de ar fresco no panorama cultural da literatura e os autores sentem que a organização de uma reunião deste tipo só alenta quem se sente inspirado a escrever. E Portugal tem escritores de enorme valia, mesmo admirados a nível internacional, tais como António Lobo Antunes, Afonso Cruz, José Luís Peixoto, Lídia Jorge, Válter Hugo Mãe, Carlos Morais José e Gonçalo M. Tavares, entre outros. Este ano, a escritora portuguesa Luísa Costa Gomes venceu o Prémio Literário Casino da Póvoa 2022 atribuído no âmbito do encontro literário Correntes d’Escritas, com o livro “Afastar-se”. O júri do concurso decidiu distinguir a obra desta escritora de 67 anos, de Lisboa, considerando a coerência na diversidade deste livro de contos, género em que a autora se tem destacado ao longo de vida literária, bem como a constante procura da forma adequada que

Luísa Costa Gomes persegue em cada conto. “No domínio da escrita, o trabalho da autora persiste com rigor constante”, destacou o júri, constituído por Ana Maria Pereirinha, Carlos Quiroga, Carlos Vaz Marques, Isabel Lucas e Isabel Pires de Lima, salientando ainda “o contundente uso da ironia na escrita de Luísa Costa Gomes”.

Mas, vocês acreditam que os canais de televisão mal fizeram referência a um evento desta tão importante envergadura no panorama cultural? É verdade, as televisões só se preocupam em programas para atrasados mentais, do tipo “Big Brother”. Uma vergonha e falta de profissionalismo de quem dirige esses órgãos de comunicação social. E esta foi a primeira vez que o principal prémio dos encontros Correntes d’Escritas foi atribuída a um livro de contos.

Luísa Costa Gomes, licenciou-se em Filosofia, foi professora do Ensino Secundário, dirigiu a revista “Ficções”, dedicada à divulgação de contos, e, além de ser autora de romances, contos, crónicas, faz tradução literária. O seu primeiro romance, “O Pequeno Mundo”, ganhou em 1988, o Prémio D. Diniz da Casa de Mateus enquanto a obra “Olhos Verdes” venceu, em 1995, o Prémio Máxima de Literatura. Com “Contos Outra Vez” conquistou em 1997, o Grande Prémio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores. O seu romance “Ilusão (ou o que quiserem)” recebeu, em 2010, o Prémio Literário Fernando Namora, pela inovação e ágil registo estilístico.

No encontro Correntes d’Escritas participaram mais de 60 autores ibéricos, o que nos dá uma ideia da dimensão e importância deste evento cultural. Felizmente, Portugal sempre teve entre os seus melhores grandes mulheres escritoras, desde Florbela Espanca a Agustina Bessa-Luís.

E foi outra mulher, a escritora Lídia Jorge, que já tem um espólio valiosíssimo de distinções obtidas no nosso país e no estrangeiro, que também recentemente foi a vencedora do Grande Prémio de Crónicas e Dispersos Literários, da Associação Portuguesa de Escritores, com o livro “Em Todos os Sentidos”. Orgulhosamente os portugueses têm de constatar que a cultura é fundamental no seu quotidiano. Relembro a alegria que sentimos há dias, ao ver subir ao palco o nosso amigo Ruy de Carvalho com 95 anos de idade e 80 de carreira. Um feito memorável que mostra ainda a todos os imbecis que nada fazem pela cultura, que esta não tem idade ou género.
Impõe-se que o evento Correntes d’Escritas continue pelos anos vindouros para que possamos sempre afirmar que ainda não mataram a cultura.

*Texto escrito com a antiga grafia

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