I know not what tomorrow will bring

No tempo em que os burros pela manhã zurravam e não se dava por uma profusão de luzes e de ribaltas, este não era um território sossegado. Talvez para quem distraidamente fitasse o espelho baço e imóvel da Baía, o trânsito frouxo e as mulheres arredias, imaginasse ser esta cidade uma pasmaceira, um local semi-adormecido, opiado pelo dinheiro fácil do jogo e entregue a uma administração complacente. Mas quem aqui fazia a sua vida sabe perfeitamente que em Macau nem o céu, nem o vento são sossegados. E quando assim aparentam estar, é mau augúrio.

Por baixo dessa aparente calma e descontração, agitavam-se emoções, planos mirabolantes, os últimos sonhos de um império desfeito. Sob o manto amorfo da apatia, uma efervescente e glamorosa realidade. Pelas ruas silenciosas, de visibilidade ténue, recortavam-se personagens ainda à procura de um papel na peça de teatro que então se findava. Disfarçados numa aparência quase jesuítica, debatiam-se e roncavam um florido erotismo a par com a mais depravada bestialidade.

Não, não foi preciso a liberalização do jogo para que o mundo viesse a Macau. Já cá estava mas era discreto: não se anunciava na berma dos passeios com luzes e promessas. Fazia-o tímido, como quem convida para uma volta num carrossel de fauna estranha e cuja corrida é de destino incerto. Pouco plástico, pouco gesso havia. A cidade tinha um sabor real a irrealidade.

*

Chama-se a isto mudar de século, de milénio, de ambiente, de sonhos e de vida. Mudar de paisagens e esquecer o subtil, o que aos poucos se revela, o passeio por jardins desconhecidos. O sabor de uma cultura a revelar-se num gesto púdico ou atrevido de uma mulher. Não, a invasão não veio para ensinar nada. Veio para fazer esquecer e inaugurar um novo paradigma.

Tudo isto me veio à memória num passeio por este Macau de hoje, sem turistas, sem negócio, sem chama, sob uma chuva fina e persistente. Uma vez mais estamos cercados, desta vez por uma doença que nos faz fechar as portas dos nossos castelos, transforma a cidade numa fortaleza monótona e triste.

Lá fora, o mundo queima o seu próprio rastilho, solavanca, ouvem-se bramidos de guerra. Lá fora, os senhores do mundo conversam interminavelmente sobre as soluções que não querem implementar. Lá fora, milhões de inocentes esperam por mais levas de ignomínia, de miséria, de infinita estupidez.

Mas aqui, aqui nesta quase-ilha, aqui neste balão que flutua sobre o Rio das Pérolas, é como se o tempo estivesse suspenso e simplesmente envelhecêssemos sem que nenhuma ruga se inscreva nas nossas faces ou nenhuma memória digna desse nome se escreva nos calhamaços da História.

Sei que respiro, que como, que porventura amo. Não sei se isto é viver, mas algo me atinge com a certeza de que estou vivo. “I know not what tomorrow will bring”.

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