A Relíquia, de Eça de Queirós – 8 (última parte)

Depois de esclarecido quem é responsável pela situação da sua vida, que era a sua Consciência e não Deus, veja-se o que é descrito às páginas 277-8 e 279: «O Deus a que te prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o Céu para quem os teus braços trementes se erguiam – o testamento da titi… Para lograres nele o lugar melhor, fingiste-te devoto sendo incrédulo; casto sendo devasso; caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a rapacidade de herdeiro… Tu foste ilimitadamente o hipócrita! Tinhas duas existências: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de rosários, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente, outra, toda de gula, cheia da Adélia e da Benta… Mentiste sempre – e só eras verdadeiro para o Céu, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a Jesus e à Virgem que rebentassem depressa com a titi. […] Eu não construo os episódios da tua vida, assisto a eles e julgo-os placidamente… Sem que eu me mova, nem intervenha influência sobrenatural – tu podes ainda descer a misérias mais torvas, ou elevar-te aos rendosos paraísos da Terra e ser director de um banco… Isso depende meramente de ti e do teu esforço de homem. […] Chamo-me Consciência; sou neste instante a tua própria consciência refletida fora de ti, no ar e na luz, e tomando ante teus olhos a forma familiar, sob a qual tu, mal-educado e pouco filosófico, estás habituado a compreender-me…»

Aqui, e depois de Teodorico encontrar um antigo colega de faculdade, Crispim, parecia que finalmente a sua vida entrava nos eixos, isto é, parecia que ele finalmente estava disposto a «elevar-se aos rendosos paraísos da Terra e ser director de um banco». Leiam-se as palavras do Crispim, depois de Tedorico ser sincero em relação ao que sentia pela irmã dele, que não era amor, mas via nela um «belo mulherão», que gostava muito do dote e havia de ser um bom marido: «Dá cá essa mão honrada!», diz o seu futuro cunhado. Mão honrada. Realmente, Eça quer que por instantes pensemos que Teodorico Raposo entrou nos eixos. Mas não é isso que vai acontecer nas últimas páginas.

Nestas, vemos Teodorico reconduzido ao sentido do mal radical, que na verdade nunca deixou, apenas por instantes adormeceu.

Esta mudança dá-se quando fica a saber que parte das propriedades da titi e a sua ex-amante, Adélia, foram parar às mãos do padre Negrão. Aquilo que, de repente, Tedorico se dá conta é de que o mal dele não foi ter sido hipócrita, mas não ter sido suficientemente hipócrite, isto é, deveria ter sido muito mais hipócrita do que foi. O padre Negrão foi muito mais hipócrita do que ele. No fundo, Teodorico percebe que em matéria de hipocrisia, isto é, em comparação com o padre Negrão, ele era um amador. Sempre fora um amador, quando pensava ser um profissional.

Deveria ter-se esforçado muito mais. Teodorico conclui que deveria ter respondido diferente, perante a camisa de dormir da amante que a titi encontrou no embrulho. Leia-se: «Agora, pai, comendador, proprietário, eu tinha uma compreensão mais positiva da vida: e sentia bem que tinha sido esbulhado dos contos de G. Godinho simplesmente por me ter faltado no oratório da titi – a coragem de afirmar! // Sim! Quando, em vez de uma coroa de martírio, aparecera sobre o altar da titi uma camisa de pecado – eu deveria ter gritado, com segurança: “Eis a relíquia! Quis fazer a surpresa… Não é a coroa de espinhos. É melhor! É a camisa de Santa Maria Madalena!… Deu-ma ela no deserto… // E logo o provava com esse papel, escrito em letra perfeita: “Ao meu portuguesinho valente, pelo muito que gozámos…” Era essa a carta em que a santa me ofertava a sua camisa. Lá brilhavam as suas iniciais – M. M. Lá destacava essa clara, evidente confissão – o muito que gozámos: o muito que eu gozara em mandar à santa as minhas orações para o Céu, o muito que a santa gozara no Céu em receber as minhas orações! // E quem o duvidaria? Não mostram os santos missionários de Braga, nos seus sermões, bilhetes remetidos do Céu pela Virgem Maria, sem selo?

E não garante A Nação a divina autenticidade dessas missivas, que têm nas dobras a fragância do paraíso? Os dois sacerdotes, Negrão e Pinheiro, cônscios do seu dever, e na sua natural sofreguidão de procurar esteios para a fé oscilante – aclamariam logo na camisa, na carta e nas iniciais um miraculoso triunfo da Igreja! A tia Patrocínio cairia sobre o meu peito, chamando-me “seu filho e seu herdeiro”. E eis-me rico! Eis-me beatificado! Meu retrato seria pendurado na sacristia da Sé. O Papa enviar-me-ia uma bênção apostólica, pelos fios do telégrafo. // Assim ficavam saciadas as minhas ambições sociais.» (285)

Veja-se a ironia e o sarcasmo com que Eça se refere, não apenas à Igreja, à religião, mas a toda a sociedade, mergulhada em profunda hipocrisia. Profunda hipocrisia que Teodorico não consegue, apesar de todo o esforço que faz. Apesar de toda a intenção e todos os esforços, Teodorico não conseguiu ser um padre Negrão. Ou tantos, como hoje, que são comendadores e respeitados homens de negócios.

Leia-se, por fim, o pequeno e último parágrafo de A Relíquia: «E tudo isso perdera! Porquê? Porque houve um momento em que me faltou esse descarado heroísmo de afirmar, que, batendo na Terra com pé forte, ou palidamente elevando os olhos ao Céu – cria, através da universal ilusão, ciências e religiões.»

No fundo, em A Relíquia, tudo é ilusão. Até o próprio leitor. A vida de Teodorico para a tia e para os amigos da tia, a vida da tia, configurada por uma inflexível fé católica, a própria vida e morte de Jesus Cristo, no famoso capítulo 3 do livro. No horizonte da vida de Teodorico, e do livro de Eça, também o bem é uma ilusão.

E, convém não esquecer, ao longo de tudo isto, o humor impera. Melhor seria dizer agora que o humor é a última ilusão. O humor dá-nos a ilusão de que aquilo que estamos a ler nem é mau, nem somos nós. Por isso nos agrada tanto ler o mal, como se fosse numa galáxia distante e não a vida que temos e levamos, no fundo, o humor permite que se veja o mal como se fosse um bem. A ilusão maior. «Sob a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia».

Não continua na próxima semana.

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