Uma genealogia simples da violência obstétrica

Toda a gente tem medo da violência obstétrica. As parturientes, claro, mas também a Ordem dos Médicos (OM) em Portugal. A OM tem tanto medo da violência obstétrica que quer negar-lhe qualquer tentativa de definição. Não querer defini-la não quer dizer que a violência não exista. Se uma árvore cai no bosque, e ninguém estiver por perto para ouvir, emite algum som? Será que a resistência das instituições em nomear a violência obstétrica é porque ela não existe num país desenvolvido como Portugal?

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto inquiriu várias mulheres acerca do seu parto e da sua interação com a equipa médica. O inquérito mostrou dados preocupantes sobre práticas não consentidas ou de práticas que não têm suporte científico – uma desatualização atroz entre a investigação e a prática. O resultado para o mau-estar das parturientes mostrou-se notório também. A necessidade de desenvolver mais investigação na área é urgente, porque existem vozes, realidades e perspectivas que parecem estar obscurecidas no suposto “normal” de realidades institucionais.

A OM pega nos resultados deste inquérito para tirar uma conclusão diferente. No parecer sugerem que os dados não reflectem práticas de violência obstétrica, mas revelam insatisfação na relação entre parturientes e as equipas médicas. Esta é uma re-significação, no mínimo, interessante. Na visão da OM, as mulheres não são vítimas de violência obstétrica, mas estão insatisfeitas com o serviço prestado. Sim, o termo violência obstétrica é forte, pressupõe agressores e vítimas. Para a comunidade médica que tem como preocupação máxima a vida humana parece uma ofensa insinuar que as práticas diárias nas maternidades portuguesas – os sistemas – estão a promover práticas de violência. Mas reduzir estas experiências a uma disposição da parturiente é querer continuar a não ouvir quem deveria estar no centro de tudo o que o parto envolve: as mulheres a parir.

A presente polarização deve-se muito em parte a esta incapacidade para o diálogo. Numa situação em que as pessoas se insurgem contra a falta de humanismo no parto, a OM tenta deslegitimar em vez de tentar dialogar. Não é surpreendente. As culturas institucionais parecem insistir num parto altamente medicamentado sem criar o espaço para as parturientes terem voz ou vontades. Das práticas referidas são as episiotomias de rotina e a manobra de Kristeller – que são contraindicadas na literatura e pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Também a posição ginecológica/litotomia (posição deitada) não é a mais indicada para parir e muitas instituições não permitem outras. A violência obstétrica tem no seu coração uma visão exclusivamente médica do parto e de uma relação hierárquica – de poder e autoridade – sobre o que o parto pode ser, infantilizando a parturiente e despindo-lhe de qualquer vontade, ou até sabedoria sobre o seu próprio corpo. A violência obstétrica mostra que é preciso construir uma visão do parto onde a parturiente é ouvida e onde as intervenções médicas são informadas, discutidas e consentidas.

A argumentação da OM parece ter resquícios de uma visão do conhecimento médico como o propulsor do desenvolvimento. Num país onde a mortalidade materna e infantil tem vindo a diminuir a olhos vistos, agarram-se a esse indicador para justificar as práticas correntes. O contexto português, diz a OM, não tem problemas com direitos humanos, e a violência obstétrica é coisa dos “bárbaros”, parecem insinuar. Só que os gritos por ajuda são outros. Não se trata de recusar todo o desenvolvimento científico até agora, mas exigir melhores cuidados médicos no parto. É preciso reconhecer que a redução da mortalidade não é o único indicador de sucesso. O bem-estar das parturientes – que é tanto físico como emocional e psicológico – tem que ser considerado no desenho institucional de intervenção no parto. Até porque esse bem-estar ajuda no processo do parto em geral.

Esta conversa pode ser estendida para as outras especialidades médicas. Mas a situação do parto é especialmente caricata porque tem sido construído como um evento de alto risco, com necessidade de intervenção médica obrigatória, uma visão, dizem alguns profissionais, um pouco exagerada. Outros países desenvolvidos mostram que há outras formas de abordar a questão. No Reino Unido, o Sistema Nacional de Saúde prevê que as mulheres saudáveis, sem uma gravidez de risco, podem ter o parto em casa se assim o desejarem. Podem estar rodeadas por quem quiserem e parirem na posição que quiserem.

A genealogia da violência obstétrica exigiria muito mais tinta e papel, não tenho dúvidas. Esta uma visão simplificada para a tensão que hoje assistimos: a falta de diálogo nas salas de parto é um dos muitos sintomas da contínua falta de diálogo protagonizado pelas instituições médicas. E os dissidentes resistem ao trazer para a esfera pública uma visão do cuidado que é fundamentalmente humana: com capacidade de escutar os gritos de desconforto e de trauma das parturientes – com muitavontade de mudança.

 

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13 Nov 2021 00:17

Interessante e aborda um tema de extrema importância, mas gostava de ver esse tema discutido neste jornal em relação às práticas aqui em Macau. Parece-me que são ainda mais “bárbaras” e isso é importante abordar também.