Quarentena e restrições de viagem sem base científica, diz epidemiologista português

O epidemiologista Manuel Carmo Gomes disse à Lusa que não vislumbra bases científicas para restrições de viagens e quarentenas, no mínimo de 21 dias, impostas a pessoas provenientes do estrangeiro. Além disso, considera que a insistência na política de zero casos “atrasa o inadiável”

 

“Dá-me ideia de que essas medidas são mais para desencorajar as entradas em Macau do que propriamente por terem sustentação científica”, afirmou à Lusa o professor, investigador e epidemiologista da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

O investigador, figura frequente nas reuniões do Infarmed (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde), vai mais longe e diz não conhecer mais nenhum local do mundo que tenha utilizado medidas dessa natureza. “Nem agora, nem mesmo nos piores momentos da pandemia”, frisou.

No melhor dos cenários, um residente, ao entrar em Macau, com um teste negativo à covid-19 ao embarcar, tem de fazer 21 dias de quarentena dentro de um quarto de hotel, mesmo estando inoculado com as duas doses da vacina. Durante esses 21 dias, são feitos vários testes à covid-19.

Depois ainda tem de passar por um período de sete dias de autogestão em que está impossibilitado de ir a restaurantes, serviços públicos, entre outras restrições. Para que a sua vida possa regressar ao ‘normal’, tem ainda de fazer um último teste à covid-19. “Não vejo a lógica nisso”, disse o investigador, que foi um dos peritos ouvidos pelo Governo de Portugal.

“Acho isso tudo muito exagerado, nomeadamente para pessoas que estão completamente vacinadas. Não percebo a lógica dos 21 dias”, frisou Manuel Carmo Gomes, recordando que Portugal teve sempre 14 dias para quarentenas, período que, na sua opinião, “já está no limite, porque é isso que se sabe acerca da duração máxima do período de incubação”.

“Não vejo bases científicas para restrições tão fortes. Acho que há aí uma componente de querer ter certezas absolutíssimas de que a pessoa não vai transmitir”, afirmou.

Anticorpos não são vírus

Há também a possibilidade de a quarentena no quarto de hotel ser de 28 dias, caso a análise de sangue feita pelas autoridades já em Macau mostrar que a pessoa possui anticorpos para a infecção, ou seja, que já teve covid-19.
Esta diferenciação do número de dias de quarentena devido aos anticorpos é também, na opinião do investigador, injustificada.

“Estar a usar ter ou não ter anticorpos como critério, acho que as bases científicas para isso são muito ténues. Por isso também não percebo”, justificou o epidemiologista, reforçando: “Não vejo qual é a fundamentação sólida para esse tipo de restrições”.

A acrescentar a estas regras, existe ainda mais uma restrição: as pessoas que tenham tido covid-19 e pretendam regressar ao território só o podem fazer dois meses depois da manifestação da doença ou da data do primeiro teste positivo, sendo que, antes do embarque, têm de mostrar um certificado de recuperação da doença, além de um teste com resultado negativo.

Em conferência de imprensa, as autoridades de saúde justificaram a medida afirmando que, “segundo a experiência de Macau, um paciente, depois de ter [tido a] infecção, até passar a ser negativo, leva dois meses ou mais (…), e durante esse período pode ter situações de recaída”.

“Aqui em Macau, um doente da primeira vez que deu positivo até desaparecer o vírus, ou seja, [até] ter resultado negativo (…), demorou cerca de um a dois meses. Por isso, durante esse período, há um certo risco de infectar outras pessoas”, explicaram.

Questionado pela Lusa, Manuel Carmo Gomes detalhou as razões científicas que demonstram que esta medida é injustificada. “Nós sabemos que com a covid-19, e não só com a covid-19, depois de as pessoas recuperarem da infecção, durante muito tempo continuam a excretar RNA do vírus”, começou por explicar. “Mas isso não significa de maneira nenhuma que estejam infecciosas. A partir do momento em que somos infectados, o vírus multiplica-se e faz biliões de cópias. Entretanto, o nosso sistema imunitário responde e nós acabamos por controlar a infeção, recuperamos, mas ainda ficamos com muitas cópias do RNA do vírus, que vão sendo excretadas ao longo do tempo”, prosseguiu.

Contudo, frisou, “esse tipo de excreção do RNA não é infeccioso”. “Se eu agarrar nos vestígios de RNA do vírus passado um mês e meio, dois meses, e tentar fazer uma cultura do vírus em laboratório, ele não é viável, portanto ele não é infeccioso”, justificou o investigador português.

Vacinas e o zero absoluto

O epidemiologista considerou que territórios como Macau que insistiram na política de zero casos de covid-19 não provocaram a necessidade às pessoas de se vacinarem e “estão apenas a atrasar o inadiável”.

“É muito difícil sem ter uma vacinação muito alta conseguir aguentar com medidas dessas. Estão apenas a atrasar o inadiável”, afirmou.

Passado mais de um ano e meio desde o início da pandemia, a ‘receita’ do território permanece quase inalterada. Macau continua praticamente fechado ao mundo, proibindo a entrada a estrangeiros não residentes, e as novas medidas epidémicas vão no sentido contrário à esmagadora maioria de outros países e territórios.

Esta receita, na opinião de Manuel Carmo Gomes, é contraproducente, porque apesar de ser possível controlar a propagação de casos através de fortes confinamentos, esta política provoca uma sensação de segurança, que pode desincentivar a população de se vacinar.

“Países que apostaram na política de zero casos rapidamente perceberam que a população não adere à vacinação, porque não sente que existe um perigo real. É o caso da Nova Zelândia e da Austrália, que já abandonaram a política de casos zero e estão a apostar na vacinação”, detalhou.

Segundo os últimos dados divulgados na passada quinta-feira, a taxa de vacinação em Macau situava-se em menos de 51 por cento da população.

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