Os 150 Anos do Hospital Kiang Wu

Há sensivelmente um século e meio, o Governo de Macau aprovou a instalação do Hospital Kiang Wu, respondendo a uma antiga e fundamental necessidade da comunidade chinesa que se via arredada do acesso à saúde, entregue a mezinhas. José Simões Morais apresenta ao HM a história de uma instituição incontornável na vida de Macau

 

Organizada pela elite chinesa de Macau, a Associação designada de Hospital Kiang Wu nasceu em 1869 para criar um hospital que servisse gratuitamente a comunidade chinesa mais desfavorecida, mas também para abrir escolas gratuitas, dar de comer a quem tivesse fome, socorrer os necessitados e enterrar os mortos cujas famílias eram pobres ou, sem ninguém para deles cuidar. “A nova instituição foi, logo de início, mais do que Hospital, em rigor deveria ser chamada – Casa de Beneficência, pois, se o seu objectivo primário era, na verdade, socorrer doentes, tanto pela hospitalização, como dispensário e consultas, nem por isso deixava de incluir, também, a instrução em escolas elementares e o socorro com outros subsídios, sobretudo em épocas anormais de epidemias, fomes, cataclismos vários, mesmo no território da China ou em locais afastados, mas onde houvesse população chinesa.

Tinha ainda como função responder pelos ritos culturais e mais cerimónias fúnebres, assim como de certa maneira representar também a principal sede do Hong (Grémio) dos vários comerciantes generosos, que por eleição escolhiam entre si os seus delegados representativos, até com carácter social”, refere José Caetano Soares, em Macau e a Assistência.

Macau, na altura, apenas tinha dois hospitais, um militar (no antigo Convento de S. Agostinho) e outro pertencente à Santa Casa da Misericórdia (Hospital de S. Rafael). Esta era a assistência médica que os portugueses usufruíam, no entanto, os doentes chineses continuavam esquecidos, entregues às mezinhas que de memória traziam de família, sem poder contar com bons profissionais de medicina tradicional, os quais só a Casa de Beneficência Sam Kai-Hui-Kun tinha capacidade de contratar, devido à pobreza extrema em que a maioria dos chineses em Macau vivia. Esta tinha a sua sede no Pagode das Três Ruas, o único edifício poupado pelo incêndio de 6 de Junho de 1818, que destruíra a maior parte do Bairro de S. Domingos, vulgarmente conhecido como Bazar Grande.

Sob a hegemonia do Mandarim de Heong-Shan (Casa Branca), a Casa de Beneficência chinesa Sam Kai-Hui-Kun (Assembleia dos habitantes das três ruas) começou a perder poder quando em 1847 o Governador Ferreira do Amaral tomou posse de todas as terras da península e expulsou os mandarins de Macau em 1849. Os novos aterros feitos para o lado do porto interior com a abertura de novas ruas e o enorme aumento da população chinesa retirou o soberano poder político à sob a comunidade chinesa, levando a uma cisão, aproveitando o governo de Macau para ajudar os dissidentes, que eram mais a favor dos portugueses, “doando-lhe uns lotes de terreno então suburbano.

Para aí foi a nova sede e nesses terrenos, mediante subscrição pública veio, também, a ser construído o primitivo Hospital Keng-Wu (Hospital de Macau) (1872). A designação Keng-Wu [Kiang Wu significa lagoa em espelho] traduz a forma literária do nosso termo – Macau”. Nesse aspecto, José Caetano Soares refere que “nunca houve propriamente Sociedade devidamente organizada à face de regulamentos superiormente aprovados [por isso nenhuma informação consta no Boletim da Província de Macau e Timor dos anos de 1870 e 1871 e só no Boletim Oficial da Colónia de Macau de 12 de Setembro de 1942, é referida a História da criação do Hospital Kiang Wu] mas o facto de ser para lá eleito, muito embora os cargos fossem sem remuneração, significou sempre prova já de distinta honorabilidade por parte da opinião geral. Pela sua feição assim honrosa e de respeito, não raro, ia servir às nossas autoridades de agente conciliador em ocasiões de atrito ou só discordância com elementos chineses, mesmo oficiais.”

EDIFÍCIOS DO COMPLEXO HOSPITALAR

A Associação do Hospital Kiang Wu, proveniente da cisão na Sam Kai-Hui-Kun, foi constituída como meio para ter voz perante o governo colonial português, e era composta por 152 influentes chineses, sendo muitos representantes dos Grémios estabelecidos na cidade.

Em 21 de Junho de 1870, o Governo de Macau aprovou a instalação do Hospital Kiang Wu, requerida pela comunidade chinesa de Macau, representada pelos senhores Sam Wong, Chou Iao, Tak Fong e Wong Lok. O Governo estipulou o foro anual de uma pataca e autorizou a angariação de fundos necessários para a construção do Hospital, num terreno de 75.000 m² na zona de San Kiu. Este era um dos locais mais doentios de Macau, onde os mortos mal enterrados, muitas vezes com partes do corpo a descoberto, e sem sepulturas, se encontravam espalhados pela encosta do monte, sendo o primeiro trabalho o de transferir os ossos dos corpos para WanZhai.

No 10.º ano do reinado do Imperador Tong Zhi da dinastia Qing, a 28 de Outubro de 1871 foi fundado o Hospital Kiang Wu, administrado por cidadãos chineses e no início, aí apenas se preparava e cozinhava os medicamentos, distribuídos gratuitamente. Só em 1874 foi no local criado o departamento de Medicina Tradicional Chinesa.

No museu da História da Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu, instalado na Casa Memorial e aberto todos os sábados das 15 às 18 horas, encontramos explicativos placards, onde num se refere que em 1871 o Hospital consistia numa construção ao estilo antigo de arquitectura chinesa [semelhante à do templo de Kun Iam Tong, tendo três pavilhões centrais]. Refere que na porta principal do primeiro edifício, [o da entrada] havia uma tabuleta a dizer Hospital Kiang Wu, sendo o átrio. No segundo edifício era o salão para as reuniões da Associação e no terceiro encontravam-se estátuas dos deuses da medicina para os pacientes orarem e pedirem-lhes ajuda no restabelecerem-se das doenças. [Nos altares aos deuses encontravam-se Hua Tuo, Guang Gong, Bao Gong, Liu Zu e Hong Sheng.]

Um outro placard adita, no original Hospital, na ala direita do terceiro edifício era o lugar onde se providenciava o gratuito tratamento médico e onde havia dentro também uma farmácia. Nesses dias, o Hospital apenas tinha o departamento de tratamento médico chinês, isto é, era de Medicina Tradicional Chinesa e todos os médicos e farmacêuticos vinham nomeados de outros locais da China para providenciar tratamento médico aos pacientes.

Ao lado um desenho com uma planta do recinto muralhado do Hospital, que apresenta semelhanças com a forma e área [de 75.000 m²] ocupada por o actual complexo hospitalar, encontrando-se representados esses três edifícios, sendo eles ladeados por outros dois de cada lado e mais recuado um alpendre e no meio do terreno o que parece ser um tin, espécie de local coberto para repousar o espírito e seguindo, ao fundo do lado esquerdo encostado ao muro, que o separa da Estrada do Repouso, três edifícios onde se colocavam os doentes graves e no lado oposto, junto à Rua Tomás Vieira, o local onde eram colocados os defuntos e guardados os caixões, assim como os edifícios de farmácia.

Ainda dentro do museu encontramos cinco bei/tabuletas tendo uma os nomes das 152 pessoas e grémios que sugeriram criar o hospital; a segunda tabuleta é o documento escrito em caracteres chineses pelo Governo português de Macau onde consta a aprovação da criação do Hospital chinês. A terceira e quarta tabuleta referiam as razões por que havia necessidade de fazer o Hospital e a quinta explicava o porquê da existência da farmácia de produtos de medicina tradicional.

Os cuidados médicos eram realizados apenas numa casa situada no lado direito dos três pavilhões, contando no terreno do Hospital com um total de 60 quartos, onde eram gratuitamente prestados serviços clínicos aos doentes e um asilo. No recinto havia ainda a casa mortuária e um armazém de caixões, que em 1933, para permitir ao hospital expandir-se, passaram para a colina de Mong Há (Colina de Lótus), onde ainda hoje se encontra na Avenida Lacerda a casa funerária da Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu.

Inicialmente o Hospital era dirigido por uma Comissão Administrativa, onde havia quatro directores. Teve como contabilista nos anos de 1871 e 72 Chan Zi Chen e em 1873 Choi Ian San e entre 1871 e 1880 conseguiu angariar 49.900 taéis de prata ($69.000,00) e recebia o dinheiro das ofertas de todos os templos de Macau. Em 1874 passou a ter uma direcção constituída por doze pessoas escolhidas entre os diferentes grémios.

AS ESCOLAS

A Associação do Kiang Wu em 1892 criou em Macau cinco escolas de instrução gratuita para crianças chinesas dos dez aos quinze anos, onde se ensinava pelo antigo sistema de educação chinesa, que na China preparava para os exames imperiais, usando-se os “Quatro Livros” (Si Shu) publicados em 1190 por Zhu Xi, que deveriam ser entendidos e decorados e o “Clássico dos Três Caracteres”, (San Zi jing) composto também na dinastia Song por Wang Yinglin. As cinco escolas situavam-se, uma em Mong-há, outra em San Pu Tau (Rua da Madeira), em San Pa Mun (Rua de S. José), em Mai Chou Tei (Rua da Palha) e por fim, em San Kiu (talvez na actual Rua Tomás Vieira).

Em 1905 as escolas foram reunidas numa só, dentro do recinto na ala direita do Hospital, que passou a chamar-se Escola Primária Kiang Wu com o sistema de educação Ocidental e a ensinar o inglês, havendo três classes e 150 alunos. Essa escola em 1950 juntou-se à Escola Primária Ping Man e tornou-se a Escola Keang Peng, cujo edifício da secção do Secundário foi inaugurado em 1997.

“Em 1917, verificando-se a exiguidade das instalações do hospital, foram estas ampliadas mercê do auxílio do Governo de Macau, de pessoas caritativas, de todas as classes sociais e de diversas entidades chinesas”, segundo refere o B.O. de 1942.

No ano 1919, num novo edifício próprio dentro do espaço do Hospital, os pacientes tratados pela Medicina Ocidental passaram a poder ficar aí internados e por isso, houve a necessidade de treinar pessoas para permanentemente deles cuidar. Tal levou à criação do curso de enfermagem, montando assim em 1923 a Escola de Enfermagem e Partejamento Kiang Wu de Macau, que em vinte anos graduou 48 enfermeiras. Em 1933, a casa mortuária e o armazém de caixões deixaram o recinto do Hospital, e para aí passaram as salas de aulas de enfermagem e o dormitório, possibilitando um permanente acompanhamento dos doentes. Os enfermeiros foram reconhecidos em 1945 como um grupo profissional, podendo para além de trabalhar no hospital, exercer a profissão noutros locais.

Em 1948, a escola começou a treinar as enfermeiras no ajudar ao nascimento das crianças, aparecendo a especialidade de obstetrícia e em 1956 foi construído o edifício para albergar essa Escola de Enfermagem.

Desde 1994, os cursos de enfermagem e obstetrícia ficaram com as habilitações oficialmente reconhecidas e designada Instituto de Enfermagem Kiang Wu de Macau foi convertido em instituição privada de ensino superior em Novembro de 1999, dedicando-se à formação de quadros qualificados na área de enfermagem. Segundo o Livro do Ano de 2013, “No ano lectivo de 2012/2013, o Instituto ministrou um total de três cursos de licenciatura (incluindo cursos complementares) e diploma profissional, contando nesse ano com 32 docentes e 305 estudantes matriculados em cursos de nível superior.” No ano anterior, com mais cinco docentes, mas menos 36 estudantes ministraram dois cursos de licenciatura.

NOVA FASE

Nos primeiros tempos o hospital oferecia apenas assistência no âmbito da medicina tradicional chinesa. Em finais de Setembro de 1892, Sun Yatsen (Sun Wen ou Sun Zhongshan, 1866-1925) após se licenciar em Medicina em Hong Kong veio para Macau convidado por Chen Xi Ru para criar um departamento de Medicina Ocidental no Hospital Kiang Wu e aí trabalhar. Chen Xi Ru em 1892 era o maior financiador do Hospital. Sun Yatsen foi o primeiro clínico licenciado em Medicina a ser contratado e como médico serviu no Hospital Kiang Wu em regime de voluntariado entre Outubro de 1892 e Setembro de 1893. Aí praticou medicina e cirurgia, ajudado nas grandes operações pelo seu professor da Universidade de Hong Kong, Dr. James Cantlie, que vinha a Macau expressamente para esse fim.

O jornal Echo Macaense, que publicava um Sumário em chinês no qual Sun Yatsen colaborou, a 19-12-1893 referia: .
Como Sun era formado em Hong Kong e segundo as leis portuguesas ninguém podia em Macau exercer legitimamente medicina sem possuir um diploma português, teve de abdicar da prática dessa profissão.

O Hospital Kiang Wu deixou de prestar assistência médica de carácter ocidental até 1935, quando foi contratado como médico licenciado o doutor Or Lun (Ke Lin, 1900-1991), que nesse mesmo ano obteve a permissão de efectuar cirurgias. Estudara na Universidade Zhongshan de Guangzhou e aí leccionou, atingindo o grau de Professor. Mais tarde passou por Xiamen onde criou um hospital e depois abriu uma farmácia em Hong Kong. Com a função de vir tratar o capitão Ye Ting (herói de Guerra chinês) veio para Macau e um ano mais tarde, em 1936 começou a trabalhar gratuitamente como professor na Escola de Enfermagem e médico no hospital. Em 1940 tornou-se membro da farmácia do Hospital Kiang Wu, conselheiro sobre assuntos de Medicina Ocidental e responsável pelo trabalho da Escola de Enfermagem. Em 1943 tornou-se Director da Escola, superintendente do Hospital e Vice-Presidente da Associação do Hospital Kiang Wu.

Durante o período da Guerra do Pacífico, o Hospital em 1943 acomodou 74.590 doentes e providenciou gratuitamente tratamentos a 89.238. Acolheu e ajudou com tratamentos médicos mais de dois mil refugiados de Hong Kong e em 1945 esses serviços gratuitos cresceram em número chegando a mais de cem mil.

Em 1941, a Associação fundou um asilo para crianças abandonadas, que só em dois anos acomodou e educou mais de 380 crianças refugiadas, tendo fechado em 1946, com o fim da Guerra do Pacífico.

Em 1941, no Hospital deixou-se de praticar Medicina Tradicional Chinesa e só nos finais dos anos 70 do século XX, esta regressou, providenciando actualmente tantos serviços de Medicina Ocidental como da Tradicional.

A sala de operações cirúrgicas, que se pretendeu construir em 1941, só a 20 de Maio de 1945 passou a existir devido às dificuldades nesse período. Em 1946, o Dr. Or Lun como superintendente do Hospital aperfeiçoou a instituição e começou a ensinar e a empreender as regras sanitárias e de saúde pública, conseguindo bons resultados para debelar a cólera, equipando o hospital com novos meios para melhorar as condições.

Em 1979 ascendeu a Presidente Honorário do Directório dos Directores, devido aos 38 anos como Director do Hospital, tendo voluntariamente durante 55 anos ajudado a Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu. Foi uma das figuras com maior prestígio de Macau, tanto a nível social, como político e sobretudo profissional.

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