Dentro dos momentos

Serpa Pinto, Lisboa, domingo, 3 Outubro

Desde a (provável) primeira exposição de banda desenhada acolhida por museu nacional, dedicada a José Muñoz («Cidade, jazz da solidão»), nos idos de 1994, no Museu Rafael Bordalo Pinheiro/Museu da Cidade, muito terá mudado, mas desconfio que não o bastante para evitar os esgares de excelso desdém ao ver bd nas paredes do MNAC. Mais ainda tratando-se de tira cómica, Bartoon. Talvez se salve por apresentar «O artista do momento: o Homem do Paleolítico». O mano Luís [Afonso], no seu inesgotável labor, uma escrita de subtilezas à base de gestos e olhares, anda esculpindo há décadas as luzes que projecta sobre temas que vão fazendo de nós o que somos, corpos do momento. No caso, reúne-se o comentando à volta das magníficas gravuras a céu aberto de Côa, tendo até acrescentado o dito Homem do Paleolítico à sua galeria de personagens. Digo magníficas em eco do que fui «ouvendo». Apesar de ter passado noite acampado à porta do Museu de Etnologia em greve de fome para que não acabassem debaixo de água, ainda não fui celebrar aquele sagrado, como deve ser, de olhos abertos e corpo inteiro.

(E vão duas recordações em um só parágrafo, continuas envelhecendo, meu velho).
E depois reencontrei o António Faria (vivemos tempos de reencontros, valha-nos isso), que interrompeu as suas paisagens para desenhar esta exposição. E para revelar o verdadeiro rosto do Luís, artista dos muitos momentos, desvelado a partir dos olhos das suas personagens.

Horta Seca (versão n.º 20), Lisboa, sábado, 9 Outubro

A Quinzena [Jean Moulin] fecha com estrondo e dois lançamentos. O do livro-relâmpago, «Jean Moulin Lisboa 1941», onde se acolheu o essencial dos textos e dos vestígios da sua passagem por Lisboa e por nós: o discurso de Malraux, dele fazendo rosto da França, o testemunho literário e (talvez) vivido de Jorge Reis, um belíssimo conto do Fernando [Sobral] a esticar todas as possibilidades ao limite da paisagem, o relatório com as contas da Resistência partida, e muito mais. Umas noitadas valentes, a fazer lembrar outros combates de urgência, corremos atrás do Jorge [Silva] que andou, tal maestro tresloucado, a pôr tudo e todos no andamento certo. Entregámos as 216 páginas a 4/4 cores ao Carlos Vintém na segunda-feira e ao fim do dia seguinte tínhamos 50 exemplares brilhando (demais) nas mãos. (Estes milagres ainda vão acabar com as tuas dúvidas acerca da impressão digital, cota…). Faltou o terno e atento texto do Ferreira Fernandes, que fez a propósito para «A Mensagem» (https://amensagem.pt/2021/10/05/jean-moulin-lisboa-comemoracoes/), mas nem a mais radical tecnologia resolveu o tempo: como incluir texto que ainda não foi escrito?

E depois o outro, aquele para as supostas crianças, quem sabe jovens, inevitáveis adultos, «Jean Moulin, a sombra não apaga a cor» (ed. APCC), traçado a meias com o Tiago [Albuquerque], que acabou por não conseguir estar. Aliás, senti-lhe a falta durante o processo inteiro de criação, que me interessa mais partilhado, dividido, rasgado. O combate entre o possível e o impossível nem sempre se perde, nem sempre se ganha.

O que aconteceu por estes lados, explodindo a partir da Casa da Imprensa, fez-nos acreditar. Descontemos os encontros e reencontros, que os houve e abraçados, além de gestos simples e comoventes, presenças regulares, disponibilidades que reverberam. Aconteceram filmes de sala cheia até altas horas, aqui no Ideal. Centenas de gente a perder-se nas exposições. Debates, acesos, e não apenas entre historiadores de renome. E depois a pedra, momento singelo em dia de comemorar a República, com todos os muitos oradores ironicamente disso se esquecendo. Está no chão do miradouro, a dizer com um olhar penetrante em granito negro do Zimbabué sobre lioz branco que as raízes podem ser horizonte. Afinal, com bem notou FF, se foi aqui que Moulin ganhou a luz, andámos, entre fogo e rasgo, a celebrar Lisboa. Uma certa Lisboa.

Horta Seca, Lisboa, segunda, 11 Outubro

Desmontada e embalada com mil cuidados a exposição Moulin, aguardo o transporte que a levará para Óbidos. Folheio o jornal do Festival Literário e noto gralha na prosa onde tratei de fazer coincidir festival e almoço de verão. Não dá para sacudir. Que venham os dias de outros e dessoutros, de vertigem e cansaço, de saber e sabor, de festa e hipocrisia, de deslumbramento e desfeita.

«Uma vespa. Uma vespa pousa-me no braço, sendo esquerdo pede palmada da mão oposta, dizem. Travo para garantir ao olhar que não é abelha, digna de respeito maior. O dono da casa e da mesa sob latada mediterrânica grita as vezes suficientes até que me aperceba: a bicha tem nome, não merece morte súbita. Uma vespa pode ter nome e nisto percebo o essencial.

Sou do Sul, portanto lugar de mesa invariavelmente estendendo-se sob sol-posto em rima com a maltosa feita casa, cal de parede e o sacudir de paisagem, serviço dobrado de sorrisos e vincos fazendo cama para pão e vinho. O cortejo dos dedos pendentes de suas mãos, marcadas pelo fazer, reparo, trazem comida e bebida, as cores, as dores. Alguém levanta a voz, sussurros concorrem com o vento, os talheres debatem-se, há-de alguém amanhar as tensões e as flores dos que, pelo toque, se dizem família. Os amigos, com eles montanhas e rectas. As falas que se partem como pão, dizem. As vozes logo se alevantam sob sopro da alegria, outros mandam calar, que faz parte. Há segredos para conter e revelações de nada para celebrar, corpos ansiosos por correr. Entorna-se um copo, elogia-se a receita, o forno, o gesto. Um dos outros terá que lavar a loiça, recolher os restos, abraçar o que sobra da partilha, uns que chegam e partem, a mesa afinal um peito. Como saber se a refeição abre, vai de meio, ou se finda? Só se ama conhecendo.

E nisto um festival. Do outro lado da mesa atiram papel amachucado garantido registo de rima imemorial com cantar e de discussão com pensamento e de debate com o marulhar do oceano e os toques de pele com o desejo e uns raios que nos partam. Para que conste, o deejay, antes de o ser ao ar livre, foi na rádio o maestro das convergências. Deixemo-lo ser agora nas noites recolhidas ao cubo. Valha-nos São Programador, padroeiro dos acidentes, esse Cristóvão das curvas!

Ao quarto parágrafo (no original estava terceiro, nunca atinas com números, velha carcaça) partilhemos a clareza possível: sacudo folhas e sobra-me um Folio a perder de vista, almoço de domingo para o que der e vier, pequenas heranças e o horizonte que nem navalha, erga-se em grito flamengo a coreografia de mãos desdobrando paisagens, guardanapos, gritos dissonantes, ideias de passar muralhas e de erguer livrarias no altar, toque enfarinhado da quentura da côdea, a sopa arrefecendo, velhas histórias, uma promessa de fruta. Cá entre nós, mal o outro mal se assome no desvão da frase faz-se fruta tocada. Morra quem se negue.”

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