História | Carlos da Maia, o Governador que imaginou a San Ma Lou, morreu há 100 anos

Antes de Carlos da Maia a zona cristã da península de Macau não se misturava com a chinesa. Foi durante o seu mandato como Governador (1914-1916) que começou a construção da Avenida Almeida Ribeiro, entre outras obras importantes para o território, mas o seu Governo não esteve isento de críticas. Republicano convicto e maçom, acabaria assassinado em Lisboa a 19 de Outubro de 1921 naquela que ficaria para a história como a “Noite Sangrenta”

 

Faz hoje 100 anos que José Carlos da Maia, Governador de Macau entre 1914 e 1916, foi assassinado no episódio trágico da I República em Portugal que ficaria conhecido como a “Noite Sangrenta”. Mais do que um republicano convicto, com ligações à Maçonaria e ao pai da primeira República na China, Sun Yat-sen, José Carlos da Maia foi um governante que, em Macau, avançou com a construção de uma série de obras importantes para o território, uma delas a Avenida Almeida Ribeiro. A via estabeleceu, assim, a ligação entre a Praia Grande, onde funcionava o centro político e financeiro de Macau, e em que as elites portuguesa e macaense dominavam, com o Porto Interior, onde vivia a maior parte da comunidade chinesa.

Arnaldo Gonçalves, num artigo intitulado “A Primeira República, Macau e os Maçons”, escreve que este projecto de Carlos da Maia “uniu a cidade cristã e a cidade chinesa”, além de que o Governador “deixou, segundo vários repórteres, uma imagem de competência, rigor e dinâmica”.

Num texto publicado no HM em 2010, da autoria de Margarida Saraiva, e intitulado “Um Jovem Romântico, uma Nova Avenida e um Beco sem Saída”, o arquitecto Mário Duque falou da importância do projecto urbanístico, que foi concluído em 1918.

“Nesta avenida configurou-se o mesmo esquema urbanístico que muitas das cidades europeias adoptaram, não só por vias das profundas transformações que sofreram, para se adaptarem aos transportes mecânicos e a novos moldes da vida urbana. Neste contexto, conduziram-se os novos meios de locomoção aos centros das cidades, fazendo do local da “gare” a nova recepção da cidade e dotando esse local de hotéis ao novo estilo da vida, os “hotéis de gare” (que muitas vezes pertenciam à mesma empresa que explorava o meio de transporte).”

Mas o mandato de Carlos da Maia foi também importante pela introdução de uma série de novas obras, como recorda o jornalista e autor João Guedes no artigo “Atribulações de um republicano português na República da China (1914-16). Foi neste período que Macau e as ilhas ficaram ligadas pelo primeiro sistema de comunicações através da telegrafia sem fios, foi criada a inspecção de incêndios e implementada a construção de um sistema de escolas primárias. Na área da saúde foi construída a leprosaria na antiga ilha de D. João, além de ter passado a ser atribuído um subsídios aos três principais hospitais do território, Kiang Wu, S. Rafael e S. Januário.

As críticas

Mas a visão de José Carlos da Maia nem sempre foi fácil de implementar e não esteve isenta de críticas. João Guedes destaca, no mesmo artigo, que “a par dos sucessos que a história lhe reconhece, Carlos da Maia também conheceu o fracasso em dois pontos importantes do seu mandato”. Um deles foi “a tentativa de levar a cabo e concluir as obras de regularização do Porto Interior”, enquanto que o outro foi “a implementação uma Carta Orgânica de Macau”.

Num artigo publicado na Revista Cultura do Instituto Cultural, intitulado “João Tamagnini de Sousa Barbosa e a Primeira República Portuguesa”, o investigador Fernando Mendonça Fava, da Universidade de Coimbra, aborda as críticas que se ouviam na Câmara do Parlamento, em Portugal, em 1916, e de como o macaense Tamagnini Barbosa sempre defendeu Carlos da Maia.

“Ainda quanto à actividade parlamentar de Tamagnini Barbosa, foi notável a empenhada defesa que fez, na arena parlamentar, do comandante Carlos da Maia, governador de Macau de 1914 e 1916. Este, um dos heróis da República, por actos de bravura cometidos durante a Revolução de 5 de Outubro de 1910, era agora acusado de, enquanto no exercício do cargo de governador de Macau, ter feito uma gestão danosa dos negócios e interesses do território.”

As críticas versavam sobre “um conjunto vasto de assuntos respeitantes à administração de Carlos da Maia” e uma delas prendia-se com o facto de existir “um projecto de obras aprovado superiormente pelo Ministério das Colónias, no qual se recomendava a empreitada geral como método de execução mais rápido, mais económico e mais eficiente”. Alegadamente, “o governador Maia acabara por ignorar a recomendação e por fazer as referidas obras por administração directa, contra a indicação de opiniões mais autorizadas e com prejuízo para a Fazenda Nacional”.

No entanto, conforme recorda Fernando Mendonça Fava, a intervenção de Tamagnini Barbosa “esvaziou de sentido e conteúdo muitas dessas acusações”.

A veia republicana

O período em que José Carlos da Maia governou Macau ficou marcado por grandes tensões políticas. Do lado da metrópole caía a Monarquia e instaurava-se a República, a 5 de Outubro de 1910. No ano seguinte, seria também instaurada a República na China, atribuindo indirectamente o papel de abrigo a Macau com muitos refugiados chineses que queriam escapar ao novo regime. Carlos da Maia nunca se opôs a esta vaga de refugiados. Ao mesmo tempo vivia-se o período da I Guerra Mundial (1914-1918).

Nascido na cidade algarvia de Olhão, em 1878, José Carlos da Maia foi oficial da Marinha de Guerra Portuguesa. “Na panóplia dos militares republicanos, Carlos da Maia era sem dúvida o segundo dos seus mais prestigiados líderes, quase a par de Machado Santos”, descreve João Guedes.

Antes da sua partida para Macau, Carlos da Maia foi deputado à Assembleia Constituinte de 1911 e à Câmara de Deputados do Congresso da República. Já depois de deixar o cargo de Governador, Carlos da Maia foi presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Lisboa, de Janeiro a Março de 1918, e Ministro da Marinha durante três meses e meio em 1918.

Os primeiros anos da República portuguesa foram marcados por intensa instabilidade política, social e económica, não só devido à participação de Portugal na I Guerra, mas também por questões intrínsecas ao novo regime político.

Morte em Lisboa

A revolta radical conhecida como “Noite Sangrenta” levaria à morte não apenas Carlos da Maia mas também outros republicanos, como António Granjo, então primeiro-ministro demissionário, Machado Santos, considerado o “fundador” da República, o chefe de gabinete do ministro da Marinha, um ex-colaborador de Sidónio Pais e um motorista.

Num artigo sobre o centenário da efeméride, publicado no jornal Público, e intitulado “A Noite Sangrenta. Como há cem anos a República se suicidou”, David Pontes escreve que circulou nas ruas de Lisboa a chamada “camioneta-fantasma” que transportou o grupo de revoltosos comandados por Abel Olímpio, um cabo da Marinha, também conhecido como “O Dente de Ouro”, bem como soldados da GNR e outros voluntários.

A “camioneta-fantasma” chegou à casa de José Carlos da Maia e foi Abel Olímpio que terá usado o argumento de que Carlos da Maia “era responsável por marinheiros terem sido ‘deportados para África’ no período de Sidónio Pais”, lê-se no artigo. Levado na camioneta, Carlos da Maia seria assassinado pouco tempo depois.

Após a morte do marido, Berta Maia ainda tentou perceber as verdadeiras razões que conduziram ao assassinato, mas em vão. A viúva ainda perseguiu “a pista da conspiração monárquica”, mas, “aos poucos, o assunto foi sendo esquecido, mesmo quando, em 1926, novos dados indiciavam a existência de ‘mandantes políticos’”, descreve o historiador Luís Farinha ao Público.

O episódio da “Noite Sangrenta” foi uma revolta radical movida por interesses políticos e tensões governativas, que “matou a I República, por mais tentativas de reorganização à direita e à esquerda que se sucedessem; foi uma sombra sobre os últimos cinco anos da I República; a ideia de que o país é ingovernável”, concluiu Luís Farinha à mesma publicação.

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