A Relíquia, de Eça de Queirós – parte 3 de 8

Segundo Kant há três classes de disposições originárias no humano para o bem: 1) a disposição para a animalidade, que origina a conservação de si mesmo; 2) a disposição para a humanidade, que origina o sentimento de igualdade e, concomitantemente, de obtenção de valorização de si por parte dos outros; 3) a disposição para a personalidade como ser racional, que origina precisamente a reverência à lei moral como lei da razão; é, no fundo, a disposição máxima para a reflexão acerca de si enquanto humano, e humano enquanto ser racional, a disposição que nos dá a consciência da nossa liberdade, a consciência de que somos responsáveis pelas nossas acções.

Reparem que estas disposições não são «naturezas», isto é, destinos, mas horizonte constitutivos do humano. Isto é, não há humano sem estes «constituintes» (palavra de Kant). E precisamente por isso, Kant refere ainda o que acontece quando nestas disposições o vício corrompe a natureza destas disposições. Na animalidade, quando o vício nos corrompe, entregamo-nos à luxúria, à gula e a uma selvagem ausência de lei, que segundo Kant é a não contemplação do outro no horizonte das nossas acções.

Não nos importamos se o outro sai prejudicado, desde que os nossos apetites sejam satisfeitos. Kant chama também a isto o amor de si, no sentido em que a pessoa pensa acima de tudo naquilo que será o seu bem-estar acima, não só do bem-estar dos outros, mas também no prejuízo dos mesmos. Na corrupção da disposição para a humanidade, entregamo-nos à inveja, à ingratidão e à alegria malvada. Com este último, Kant quer dizer «comprazimento no sofrimento alheio».

E do mesmo modo que há três classes de disposições para o bem, há três diferentes graus de propensão para o mal. Repare-se que Kant faz uma distinção entre disposição e propensão. A disposição é constituinte, a propensão é um estar-se predisposto a alguma coisa. Por exemplo, podemos ser predispostos ao alcoolismo, mas nunca chegarmos a beber ou até a controlar essa predisposição. Uma disposição é constituinte, por conseguinte sem possibilidade de não acontecer. O primeiro grau de propensão para o mal deve-se à pusilanimidade, ou, como lhe chama Kant «[…] a debilidade do coração humano na observância das máximas em geral […]» (35) Ou seja, apesar de vermos o caminho do bem, aquilo que deveríamos fazer, por fraqueza não o conseguimos fazer.

O segundo grau é a «impureza», isto é, como escreve Kant «[…] a inclinação para misturar móbiles imorais com os morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem).» (35) Por fim, o terceiro grau de propensão para o mal, segundo Kant, «[…] é a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i. e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano.» (35) Trata-se no fundo daquilo a que Kant chama «perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral a respeito dos móbiles de um livre arbítrio e, embora assim possam ainda existir acções boas segundo a lei (legais), o modo de pensar é, no entanto, corrompido na sua raiz […].» (36)

Não nos causa qualquer dificuldade ver aqui Teodorico Raposo. Que ele seja um homem mau não nos causa quaisquer embaraços ao pensamento, mas como acusá-lo de «mal radical». O mal radical, segundo Kant, não se prende com a gravidade do acto em si, mas com a consciência dele ou, se preferirmos, com a sua premeditação e inversão do sentido moral. Escreve Kant, em A Religião dentro dos Limites da Simples Razão: «Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas; […] deve, no entanto, ser possível prevalecer [sobre o mal], uma vez que ele se encontra no homem como ser dotado de acção livre.» (43) O que está aqui em causa, para Kant, é que, e passo a citar: «Nesta inversão dos motivos, graças à sua máxima, contra a ordem moral, as acções podem, apesar de tudo, ocorrer de modo tão conforme à lei como se tivessem promanado de princípios legítimos […]» (42) É aquilo que vimos hoje acontecer com os bancos, com as offshores, por exemplo. Quando fazemos o mal, conscientemente, mas o justificamos com a lei. É aquilo a que Kant também chama «radical perversidade do coração humano». (43)

E, continua o filósofo: «Esta desonestidade de lançar poeira nos próprios olhos, que nos impede a fundação de uma genuína intenção moral, estende-se então também exteriormente à falsidade e ao engano de outros, o que, se não houver de se chamar maldade, merece pelo menos apelidar-se de indignidade, e reside no mal radical da natureza humana […].» (44) Acerca deste mal radical da natureza humana falaremos em outra semana. Por ora, fixemo-nos naquilo a que Kant chama de mal radical pessoal, sempre ligado à premeditação e perversidade da lei continuadamente ou, se preferirmos, a sobreposição da interpretação da lei à máxima, que é aquilo que vemos em Teodorico Raposo nos primeiros dois capítulos do livro de Eça de Queirós, como iremos ver melhor ainda na sessão de hoje.

Para Kant, nós somos livres se formos racionais, isto é, conforme razão. E deixamos de ser livres se nos movermos segundo um objecto exterior, quer seja a aquisição de dinheiro quer seja aquilo a que ele chama felicidade própria.

Para Kant, se eu percebo o que está certo, mas não o faço, porque vai contra os meus interesses, contra os meus desejos ou os meus sentimentos, então não sou livre. Sou, pelo contrário, um escravo desses interesses. Escravo desses desejos e desses sentimentos é aquilo a que Kant chama «inclinações». Por exemplo, se sei que a ação X é errada, mas ainda assim a faço, empurrado por exemplo pelo medo, pela ganância ou pelo ciúme, não sou livre. Só sou livre quando faço aquilo que tenho a obrigação moral de fazer. Assim, não basta escolher para ser realmente livre, é preciso escolher bem. Só sou livre quando faço aquilo que tenho a obrigação moral de fazer. Porque seguir a razão é seguirmo-nos a nós próprios.

A liberdade é escolher segundo a razão e não segundo aquilo que são as nossas inclinações ou aquilo que julgamos trazer-nos bem-estar. No fundo, para Kant, o mal reside na vontade. É a vontade que nos impele a más decisões ou pode impelir-nos a más decisões, como também é muito claro em Teodorico Raposo. É a guerra entre razão e vontade. Ou se quisermos, a guerra entre liberdade e subordinação a algo exterior.

Porque a vontade tem sempre como móbil algo que não nos pertence. A vontade é dirigida para algo e por aquilo que está fora. E ficar deposto na vontade leva-nos a querer encontrar desculpas para as nossas decisões. E é assim que as más decisões encontram na interpretação um forte aliado

Kant mostra-nos que a interpretação como aliado do mal, ou das más decisões, já se encontra na Bíblia, em Moisés II e III, e escreve: «Toda a deferência atestada para com a lei moral sem, no entanto, lhe conceder na sua máxima a preponderância sobre todos os outros fundamentos de determinação do arbítrio, como o motivo impulsor por si suficiente, é fingida, e a propensão para tal é interna falsidade, i. e., uma propensão para mentir a si próprio na interpretação da lei moral em desta (III, 5); por isso, também a Bíblia (na sua parte cristã) chama, desde o começo, ao autor do mal (que em nós próprios habita) o mentiroso, e assim caracteriza o homem no tocante ao que nele parece ser o fundamento capital do mal.» (48)

No fundo, quando a interpretação da lei se sobrepõe à máxima estamos a entregar-nos à mentira. E este modo de ser é a expressão pessoal do mal radical. Uma vez mais, Teodorico Raposo por inteiro.

Continua na próxima semana

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