Por que não fugiu Monty?

Como lhe sugere o pai, por que não foge Monty? Cumprirá sete anos por narcotráfico, consciente de que tendo rejeitado continuar no “esquema” mafioso dentro da cadeia ou tornar-se informador da polícia ficará mais desprotegido e sujeito à violência e à arbitrariedade. Contudo, Monty escolhe a “via recta” num labirinto de solicitações e de emboscadas – e a sua escolha insólita eleva-o a um plano ético insustentável, embora, dada a dificuldade, digníssimo.

Falo de “A 25ªHora”, de Spike Lee, que revi agora porque preparo um pequeno ciclo do cineasta.

Aos sete anos, Monty tem pouca esperança de sobreviver. A narrativa segue as suas últimas horas de soltura (fora alguns flash-backs de contextualização); vemo-lo abrir mão dos privilégios que conquistou como traficante: uma boa casa, a entrada VIP em boates, a fama e a prosperidade económica. E despede-se do pai, um comerciante alcoólatra a quem o filho foi safando as dívidas, da sua namorada Naturelle (Rosario Dawson), que o ama apesar das desconfianças dele, e dos seus melhores amigos de infância, Jacob (Philip Seymour Hoffman), um tímido professor do liceu apaixonado por uma aluna, e Slaughtery (Barry Pepper), um corrector de sucesso em Walt Street. Os quatro passam a última noite livre de Monty, enquanto se adensa a questão de saber quem o terá denunciado à polícia (- terá sido Naturelle?).

Monty extrai as devidas consequências dos seus actos e aceita estoicamente a ida para a prisão. Monty não é um rebelde sem causa, alguém a quem o instinto da liberdade, à visão do castigo, faz espernear; vibra nele uma espécie de diapasão que lhe tempera o tom certo a cada momento da sua vida. Houve necessidade, para resolver certas coisas, de entrar nos negócios ilícitos, e fê-lo convictamente, com eficácia, desfrutando o que pôde da situação. Depois conheceu o amor e entregou-se-lhe, sem reservas nem cinismo – sinal de que o seu carácter não fora corrompido. Com a mesma naturalidade e a mesma lucidez face às circunstâncias, aceita o custo da redenção.

O carácter de Monty clarifica-se logo de início quando, contra a opinião de Kostya (o ucraniano que o denunciará), resolve salvar o cão que encontraram abandonado e ferido, em vez de matá-lo num “gesto de misericórdia”.  É um homem decente que face a certas circunstâncias teve necessidade de enveredar por más escolhas.

A sua índole conhece um contraste em Slaughtery, o corrector. Que vive duma actividade lícita onde só a lógica entra, arredia à natureza do escrúpulo.

Jacob vai a casa de Slaughtery, definido num ápice pelo que há sobre a mesa de trabalho – o Financial Times, revistas de gajas nuas, garrafas de vinho: é um hedonista empedernido. As janelas do apartamento dão para o Ground Zero, o espaço vago das Twin Towers (o filme é de 2002). Dá-se aí uma conversa desconcertante, sintomática. Jacob refere que segundo as informações o “ar daquela zona é irrespirável” e pergunta-lhe se não pensa em mudar. Slaughtery insinua-lhe que ainda espera ganhar muito com a inflação imobiliária e por isso, mesmo que tivesse como vizinho o Bin Laden, não tenciona mudar de poiso.

Slaughtery não tirou as devidas consequências do desastre de 11 de Setembro, a que pôde assistir “nas primeiras filas”; para ele quando se vive na selva há que seguir as regras e aproveitar as oportunidades: é um puro caçador-colector.

Monty/ Edward Norton é de outra índole, mesmo que pleno de contradições. Fez o que havia a fazer na sua oportunidade, agora tem necessidade de redimir-se e rejeita as possibilidades flagrantes de fuga, preferindo uma “reparação” quase irrespirável. Apesar das tentações que o pai enumera pelo caminho, o filme termina sem mercê (- sendo incerto que Monty resista ao inferno da prisão).

A dado momento, Monty, que almoça com o pai, vai à casa de banho do restaurante e um “Fuck You” que alguém escreveu a marcador no espelho atira-o para uma longa diatribe sobre os tipos humanos e étnicos que compõem a cidade, uma massa diversa de comportamentos anómicos que segundo o discurso transformam a urbe numa pauta de irresgatáveis dilaceramentos morais; como se se confessasse filho de um determinismo inescapável. E nada fica de fora desse discurso, da manhosa “inocência” das minorias e do assistencialismo a que se encostam à cupidez dos judeus ou à torpeza dos que impõem a lei. É um segmento que parece desgarrado no filme, uma espécie de manifesto. Que, contudo, se integra e se elucida na sequência final quando no percurso para a cadeia, o rosto condoído e desfigurado de Monty dentro do carro vê como aqueles de quem ele disse mal lhe acenam dos transportes públicos, num gesto de empatia, que lhe antecipa o perdão.

“25th Hour”, que só ganhou com o tempo, feito ainda no rescaldo do 11 de Setembro, é um magnífico manifesto sobre a necessidade do perdão.

O segmento do filme com o Ground Zero, que Spike Lee acrescentou ao romance adaptado, deu uma outra densidade à narrativa e um segundo nível de leitura que o tempo trouxe à tona.

O perdão teria de começar por um “encarceramento” interno, especular, da América, que a fizesse reflectir e reconhecer os seus crimes, antes de se estender de forma incondicional, gratuita, infinita aos terroristas.

Só a força da “resposta paradoxal” introduz mudanças radicais nos comportamentos culturais: foi assim com o oferecimento da outra face, em Cristo, com a inesperada inflexão para a reconciliação de Mandela, que salvou a África do Sul de um banho de sangue, com o pacifismo de Ghandi face ao imperialismo britânico.

Spike Lee intuiu-o, mas a América não esteve à altura da sua lucidez nem teve a grandeza de o seguir. E escolhendo depois a mentira como modo-de-uso imperial a América pôs-se de costas voltadas para o mundo. Começou então o regime de um mundo pós-verdade.

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