Lá atrás

Quando entrei na faculdade, em filosofia, estava tudo menos preparado. Não só para a faculdade como para a idade adulta, se assim o podemos chamar. Tinha vinte anos, era mais velho do que os meus colegas de primeiro ano e, ainda assim, não estava preparado.

A vida é toda ela um pouco isso, cenário destas divergências entre a idade legal ou socialmente idealizada para fazer uma coisa – beber, tirar a carta, casar, abrir um negócio – e a idade em que um sujeito se sente capacitado para tal. Há muitas pessoas que poderiam perfeitamente ter tirado a carta aos dezasseis, ou até antes, e há pessoas – que vemos todos os dias na estrada – que nunca o deveriam ter feito. Há pessoas que acertam praticamente sempre na altura de tomar decisões – seja vender a casa, ir de viagem ou apenas o caminho a tomar naquele dia. E há pessoas que falham quase sempre. Somos tempo e é por ele que medimos o acerto e o fracasso.

Eu vinha de Albufeira e fui morar para uma casa típica perto de Santa Apolónia. Quatro quartos – começámos com três, mas pobretanas como éramos, rapidamente prescindimos da sala para dar espaço a outra pessoa –, uma cozinha, uma casa de banho. Vínhamos todos do Algarve. Lisboa era apetecivelmente enorme e havia tudo o que não havia em Albufeira: teatros, cinemas, livrarias, alfarrabistas, a noite com todos os seus espaços e possibilidades, um sem-fim de raparigas bonitas, de amigos por descobrir, de gente com quem traçar tangentes a caminho do trabalho final de curso. Filosofia. Depois do final do curso, não se adivinhava uma saída profissional que não o ensino ou a árida e insegura carreira académica. Felizmente, nessa altura era-se demasiado tonto para equacionar devidamente as consequências. Há coisas que, felizmente, só fazemos porque não sabemos mais.

A casa estava quase sempre desarrumada, a loiça quase sempre por lavar. Cada um retirava com basto nojinho o prato, a faca e o garfo que ia utilizar, lavando-os tão bem quanto sabia para no final da refeição os deixar no lava-loiça, novamente sujos, novamente à espera do desespero do próximo esfomeado. Era uma baderna masculina sem qualquer tipo de romantismo salvífico.

A coisa boa dessa impreparação para a convivência, para a idade adulta e para as coisas dos adultos, fruto também da forma como cada um tinha crescido e sido educado, era a possibilidade de, longe e com medo, cada um se reinventar sem ninguém fosse capaz de fazer luz sobre a inconsistência da criatura face ao seu passado. De repente, tudo quanto eu via reflectido no espelho da minha interioridade – e não gostava – era passível de ser mudado (claro que não o era, mas muita coisa é-o e não o fazemos por conveniência ou medo).

A minha aprendizagem, fora do espaço das aulas, foi sobretudo essa: despir-me, vestir-me, olhar-me ao espelho e tentar perceber a pessoa em que me estava a tornar e a pessoa que, desesperadamente, não queria ser. O que eu queria ser era apenas ideal: um tipo mais ou menos correcto, mais ou menos capaz de encontrar o amor, mais ou menos fiel a uma voz interior a que na altura prestava pouca atenção.

Quando sai da faculdade, cinco anos depois e uma tentativa de doutoramento frustrada pelo meio, era outra pessoa. Ganhara a segurança que é a valiosa poeira que as refregas vão soltando cada vez que eclodem, tinha alguns preceitos morais – fruto da tentativa e erro – e tinha a certeza de que o amor, mesmo que raro e esquivo, podia ser encontrado.

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