A Relíquia, de Eça de Queirós – 2 (de 8)

Logo nas primeiras páginas, o narrador informa o leitor da razão pela qual quer contar a sua história, e adianta também que não vai escrever um livro de viagens, referindo-se claramente ao capítulo 3 do livro. A edição aqui usada é a da Porto Editora, 2009. Leia-se: «Mas hoje, escrevendo por motivos peculiarmente espirituais, pretendi que as páginas íntimas em que a relembro [a viagem realizada] se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente. Por isso (apesar das solicitações da vaidade), suprimi neste manuscrito suculentas, resplandecentes narrativas de ruínas e de costumes…» (página 6) Eça de Queirós deixa assim bem claro, e desde o início, que não vai fazer um relato de viagem. O seu relato, poderíamos dizer a sua viagem é outra, «peculiarmente espiritual». Ver-se-á noutra semana que este «peculiarmente espiritual» irá ter um papel importante na economia do livro. Atente-se que no final da sua introdução (de quatro ou cinco páginas, consoante a edição), ele explica que aquilo que o leva a escrever este texto é uma correcção em relação ao texto do professor alemão. A saber, o facto de ele ter escrito no seu livro que aquilo que Teodorico Raposo transportava consigo em dois embrulhos, ao longo de toda a viagem, desde as vielas de Alexandria, eram os ossos dos seus antepassados. Algo que para o narrador era inadmissível, não apenas por não ser verdade, mas porque essa informação poderia prejudicá-lo diante da Burguesia Liberal. Assim, logo de início somos confrontados com duas causas para a escrita do texto, que nos parecem antagónicas: «peculiarmente espiritual» e «alcançar as coisas boas da vida, através de não cair em desgraça perante a Burguesia Liberal». (9)

O livro, isto é, a narrativa de Teodorico Raposo, começa logo a seguir com esta frase: «Meu avô foi o padre Rufino da Conceição, licenciado em teologia, autor de uma devota Vida de Santa Filomena e prior da Amendoeirinha.» (11) É um início irónico, mesmo sarcástico, ao anunciar que o seu antepassado era padre, teólogo, e autor de uma devota obra sobra a vida de Santa Filomena. O tom está dado. E continua. Duas páginas depois, contando muito rapidamente a história do seu nascimento, a partir dos avós paternos, e já depois de nos ter contado que a mãe morrera assim que ele nascera, escreve: «Depois, numa noite de Entrudo, o papá morreu de repente, com uma apoplexia, ao descer a escadaria de pedra de nossa casa, mascarado de urso […]» (13) A história do fidalgo Teodorico Raposo começa com a relação do avô, que era padre, teólogo e autor de um devoto A Vida de Santa Filomena, com a sua avó, Filomena Raposo, de alcunha a Repolhuda, que era doceira, e a sua ascendência desaparece com o pai a morrer mascarado de urso. Eça de Queirós compõe esta peça na tonalidade de humor. Se o riso é fruto do absurdo do mundo, o humor é a consciência desse absurdo. E o humor é uma forma, talvez privilegiada, de nos pôr a pensar.

E é isto que Eça pretende que o leitor faça ao compor esta partitura em tom de humor. Porque o tema em si mesmo é um tema profundo e negro: «o mal radical». Eça nunca usa esta expressão, mas ela percorre todo o livro como uma sombra que acompanha a acção e os pensamentos de Teodorico Raposo. Já em O Primo Basílio, Eça de Queirós escrevera pela voz do médico Julião: «Mas quem tem aí princípios? Quem tem aí quatro princípios? Ninguém; têm dívidas, vícios secretos, dentes postiços; mas princípios, nem meio!» A noção de decadência moral da sociedade da sua época era uma constante nos livros de Eça de Queirós. Mas por pior que Basílio seja, Teodorico é muito pior.

Teodorico configura aquilo que Immanuel Kant descreveu como «mal radical» no livro A Religião nos Limites da Simples Razão. Veremos adiante aquilo que se entende por mal radical, mas adiantemos que se conecta com o egoísmo. Pelo menos é assim que Eça pretende que vejamos, mas que em Kant se expressa como «amor de si» ou «amor próprio»: «[…] amor de si; tal amor, aceite como princípio das nossas máximas, é precisamente a fonte de todo o mal.» (Immanuel Kant, A Religião nos Limites da Simples Razão, Edições 70, 2008, p. 51)

Os dois primeiros capítulos do livro de Eça de Queirós são a história de Teodorico Raposo, contada na primeira pessoa. Ficamos a saber quem ele é, de onde vem e o que pretende. Se o livro terminasse nestes dois capítulos ficávamos a saber tudo acerca de Teodorico Raposo. Não apenas o que ele é, mas no que ele se tornaria se o plano tivesse dado certo: um Teodorico sem escrúpulos, rico, e na farra em Paris.

Depois da morte do pai, Teodorico será criado pela sua tia, irmã da mãe, D. Patrocínio, mulher muito rica e que nunca conhecera homem. Completamente devota a Deus e aos santos. Neste ambiente, Teodorico torna-se um anti-herói. O modo como nos narra a sua história, mostra-nos par e passu a sua hipocrisia, a sua cobardia, a sua vilania, o seu egoísmo. Teodorico vive com a tia, mas não gosta dela. E nem segue os seus valores, nem sequer os respeita enquanto vive em casa da tia. Teodorico apenas finge que segue esses valores e que os respeita. Tudo em Teodorico é fingimento: tanto os afectos quanto o comportamento. A sua narrativa na primeira pessoa não nos deixa dúvidas acerca do seu carácter, da sua índole, dando-nos a ver a diferença entre o que ele diz à titi e o que ele pensa e faz.

Teodorico mostra-nos que não é bom e não deixa nenhumas dúvidas ao leitor acerca disso. Este assumir-se para nós como pessoa que mente continuamente não apenas à tia, mas aqueles que são próximos da tia, enquadra-se claramente naquilo a que Kant chama «mal radical». Mal radical não é um mal horroroso, como o que alguns acusam Hitler ou Stalin de protagonizar.

Antes de avançarmos mais, convém esclarecer o sentido do adjectivo «radical». Aqui, «radical» não é uma acção limite, como quando se diz hoje «desporto radical», Kant usa o adjectivo no sentido de «raiz». O mal é a nossa raiz, porque ligada à nossa natureza, às nossas inclinações. O mal só não seria a nossa raiz se fôssemos pura razão, isto é, divinos. Temos como raiz o mal. Em 1792, Kant publica um artigo chamado «Sobre o mal radical na natureza humana», que no ano seguinte, 1793, será um dos quatro textos do livro A Religião dentro dos Limites da Simples Razão. Antes de apurarmos o que é o mal radical, veja-se o que Kant designa por um homem mau em A Religião dentro dos Limites da Simples Razão: «Chama-se, porém, mau a um homem não porque pratique acções que são más (contrárias à lei), mas porque estas são tais que deixam incluir nele máximas más.» (26) Por conseguinte, para Kant o mal não é uma natureza que se tem, mas uma escolha que se faz. Leia-se ainda no mesmo texto do filósofo: «[…] não é a natureza que carrega com a culpa (se um homem é mau) ou com o mérito (se é bom), mas o próprio homem é dele autor.» (28) É a liberdade humana, a escolha, que decide acerca de se ser bom ou mau. Que Teodorico Raposo é uma pessoa má, não restam dúvidas, pois ele age continuamente em contramão da lei moral. Ele é autor das suas próprias más acções.

Continua na próxima semana

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