As viagens de Gulliver – Sétima e última parte

Veja-se então como se dá a aproximação deste livro de Swift à Alegoria da Caverna de Platão. Comece-se pela distinção entre opinião e razão (traduza-se assim o ponto de vista contrário à opinião). Na última parte do livro de Swift, a opinião aparece como apanágio dos humanos e a razão como apanágio dos houyhnhnms. E este povo de cavalos não conseguia compreender sequer como era possível existir a opinião. Não conseguiam compreender porque eram completamente racionais, e segundo a razão não há lugar para a opinião, tal como na filosofia de Platão. O oposto de pensar é opinião, doxa. O mundo da doxa é, na verdade, o mundo das sombras, o mundo dos escravos que vivem acorrentado na caverna, longe da luz do sol, longe do ponto de vista das ideias. Mas aonde é que em As Viagens de Gulliver se dá essa passagem decisiva para a alegoria da caverna de Platão? Aonde a podemos identificar claramente?

Começa no final do capítulo X, quando está anunciado o regresso de Gulliver a casa. Leia-se: «[…] como podia pensar em acabar os meus dias entre yahoos, caindo de novo nos meus velhos hábitos de corrupção por falta de exemplos que me conduzissem e mantivessem no caminho da virtude?» Está aqui identificada precisamente a última parte da Alegoria da Caverna de Platão, a impossibilidade do regresso à caverna por parte daquele que viu a luz do sol, isto é, aquele que viu a realidade do mundo, a realidade das coisas e de si mesmo. Em A República, livro VII, entre 514 a-517 d, Platão introduz a célebre Alegoria da Caverna. Há três momentos fundamentais nesta alegoria: 1) a descrição da situação dos prisioneiros; 2) a libertação de um dos prisioneiros; 3) o regresso do prisioneiro à caverna e ao convívio com os outros prisioneiros.

Veja-se o primeiro momento, que nos configura a situação dos prisioneiros. Eles estão presos com correntes de tal modo que não se conseguem mover, nem a cabeça, de frente para uma parede da caverna; no lado oposto da caverna estão instaladas enormes fogueiras e perto destas há um caminho que liga a caverna à superfície e por onde passam os habitantes da mesma que detêm os prisioneiros. Este caminho situa-se numa posição mais alta do que a dos prisioneiros e os habitantes ao passarem no caminho, devido à luz das fogueiras, projectam as sombras na parede em frente aos prisioneiros. Aqueles prisioneiros sempre estiveram ali, acorrentados, não conhecem outra realidade se não as sombras projectadas na parede e o som que escutam por detrás deles. Assim, eles discutem entre eles as sombras que vêem, prevendo o que se irá passar, analisando o que se passou, etc.. E há entre eles alguém que consegue fazer isso muito melhor do que os outros e é invejado ou admirado pelos outros. É esta a situação dos prisioneiros que, como se vê, não está distante da situação de Gulliver antes de ter encontrado o povo de cavalos. Gulliver, ele mesmo reconhece, embora por outras palavras, que sempre viveu numa espécie de caverna, onde o que via e julgava ser a realidade não passava de sombras.

No segundo momento da Alegoria da Caverna, um dos prisioneiros é libertado, do mesmo modo que Gulliver ao encontrar aquele povo de cavalos. Ele sobe à superfície e percebe que as coisas existem e que as sombras são apenas um reflexo da luz. Mais: ele percebe também que as próprias fogueiras (que antes desconhecia) são uma imitação do sol. Tal como Gulliver, o prisioneiro começa a perceber que sempre viveu nas sombras, que nunca viu a realidade na vida. Obviamente, isto causa um enorme transtorno, inicialmente.

O terceiro e último movimento da Alegoria da Caverna é quando o prisioneiro regressa ao convívio dos outros prisioneiros. Esta parte, em verdade, é o final de As Viagens de Gulliver, que é algo muito violento, pois os outros prisioneiros pensam que ele enlouqueceu. Na impossibilidade de poderem imaginar sequer que seja possível que a sua vida seja sombras e não a realidade, se pudessem matavam o mensageiro. Não conseguem ouvir o que ele diz, e passam a considerá-lo louco e a rir-se dele. Mas pior ainda do que a incompreensão por parte dos outros, para Gulliver, é ele não conseguir mais conviver com eles. Gulliver tinha feito uma viagem ao sol, uma viagem ao que seria viver segundo a razão.

No penúltimo capítulo do livro, o XI da quarta parte, lê-se: «[…] a minha memória e a minha imaginação estavam constantemente repletas das virtudes e ideias dos gloriosos houyhnhnms. E quando principiei a pensar que copulando com uma Yahoo me tinha transformado em progenitor de outro yahoo, senti-me profundamente envergonhado, confuso e horrorizado.» (274) Curiosamente esta passagem também vai ao encontro de uma passagem de Nietzsche acerca do casamento em Assim Falou Zaratustra. Não cabe aqui ler essa passagem, mas ela está ligada à ideia de que o casamento só deve acontecer se for para criar um super-homem, isto é, alguém acima deste mundo de yahoos. A não ser assim, o melhor é não procriar de todo. Quem queira conferir, a longa passagem encontra-se na parte do livro que tem o subtítulo de «Os Discursos de Zaratustra – Das Três Metamorfoses» no capítulo chamado «Dos filhos e do casamento».

Tenho a noção de que estive muito longe de fazer uma leitura exaustiva acerca de As Viagens de Gulliver. Mas julgo ter conseguido mostrar algumas das linhas gerais que considero mais pertinentes, apesar de muito ter ficado por mostrar, evidentemente, e como não poderia deixar de ser numa obra tão extensa, tão rica e complexa. Principalmente as inúmeras passagens de ironia e crítica política e social.

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