Corpo devagar

Delito. Matar o tempo, diz-se. Fazê-lo passar mais depressa e sem sentir o seu rasto lento, na expectativa de algo. Mas há outra maneira de o silenciar. Suspender sem extinguir, a respiração imparável e ficar num limbo de ilusória eternidade. O sem tempo de um intervalo. A quase morte do tempo por fuga da vítima. Uma coisa defensiva e sem instintos homicidas.

A pele das coisas. Espelhos visíveis. À flor da superfície. A lembrar-me. Desse corpo revestido de ti.
Pouso o guardanapo, o copo a libertar um aroma rico, colorido e encorpado, da região que eu gosto. Aliso a saia e disponho-me de costas direitas a fruir. O rio aqui atrás invisível mas a três passos largos. Uma pausa oferecida a custo num dia de agitação demais. Inquietações que não se curam senão com um intervalo de esquecimento. Um almoço que não pode ser longo mas terá o dom de parecer um daqueles momentos que duram eternidade mais uns minutos, mesmo se pouco mais do que isso contando no relógio. O pão de forno de lenha ainda morno e um pratinho de azeitonas. Não precisava de mais. Coloridas, amargas da cura e do tempero variadas. A lembrar-me, umas, os teus olhos, outras a cor da pele. Aquelas daquele tom de pele que é a lembrar o teu. Também invisível mas já aqui atrás à distância de um pensamento leve. Umas lascas da pequena merendeira intensa de ovelha, curada por fora com uma pele a ficar espessa e ainda sedosa por dentro. Coisas simples vindas de mais a sul e que lembram a mesa que era de casa e de sempre. Viva na memória.

Delito de ser corpo. Devagar. De pensamento. Um corpo amado tem uma arquitectura própria. Tão específica que se deve a um encontro de acaso entre um sentimento e uma genética da qual só se conhece a obra final. Percorre-se num olhar milimétrico e tudo é coerente com o sentido de posse que é a de amar. Não a de ter mas a de conter. Um palmo de pele discreta como o é sempre, a esconder mistérios que é como se não existissem. Não há um veículo que transporte nenhuma função orgânica que transcenda a visão estética. A visão pura. Coincidente. Avança-se um centímetro mais, com a palma da mão onde se concentra tudo. Minto. Menor a superfície do tacto e maior a intensidade. É já só a ponta dos dedos que sente mais e não há mais nada e é o todo que se intui em cada parte e prévio ao desejo. Poder-se-ia dizer que do corpo nasce. Este. Mas é um pouco como se o corpo pré-existente fosse produto do olhar que ama cada detalhe como por um acto de reconhecimento. Sem voz. A este corpo chegam as vozes únicas vindas do tacto e do olhar atento, focado. A ouvir de dentro. Não há mais desejo. Somente espanto, ou devoção. Deito-me esguia como me sinto como sempre quis ser, como uma linha a contornar um corpo ao lado. Em baixo, coberto pelo olhar, protegido do esquecimento. Deito-me ao lado. Deito-me a perder-me de vista. Nesse corpo que é único como o que lhe sinto ser seu. Eu. A elaborar esse corpo. De sentido se do amor que não se faz de mais do que disso.

Dessa paixão por entardecer na praia. Anoitecer. Serenar e silenciar tudo. Restando um estar ao lado, deitada, soturna de tão tarde, centrada e surda. A respirar esse momento – corpo. Ali. Ao lado. Dentro. Como um fado. E destilar-se dos olhos. A encaminhar-se na mão leve que toca somente para se fazer existente. Ou até acariciar o corpo meio ausente. Ali estranho. Em si distante quanto pesado de evidência.
Apago o candeeiro da mesa, chega de realidade, por hoje.

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