Contos da normalidade normal

Camponesa, Lisboa, terça, 11 Maio

 

O tempo tanto arredonda os dias como os arremessa, finge-se planície e nisto ergue vincos, quinas de arranhar epidermes. Em Setembro próximo terão passado uns redondos 80 anos desde que Jean Moulin, futuro herói da Resistência francesa ao nazismo e ao quietismo, calcorreou por estas ruas do Chiado a caminho de Londres para mudar de pele. Era um jovem prefeito acabado de despedir pelo regime infame de Vichy que há uns meses descobria que sua ideia de bem comum implicava o risco da desobediência. Quando em noite de lua apropriada caiu de pára-quedas perto do lugar onde havia nascido era já Rex e tinha missão: atar os fios soltos que erguiam um exército de sombras. O João [Soares] resolveu agregar energicamente um grupo de amigos para evocar aquela figura e percurso, arrastando-nos em frenesi de contactos e leituras e investigações e possibilidades. Seria difícil encontrar melhor corda a que me agarrar para, em esforço, sair das areias movediças em que me encontro, umas vezes até cintura, outras pelo pescoço. O interesse não se encontra tanto nos detalhes narrativos da curta vida de um reservado amante da boa vida, que trocou as artes, que chegou a praticar, por carreira de funcionário público ao serviço de certa ideia de República, herdada do seu pai. A sua biografia cedo se torna portal para regressos à noite escura europeia, e, no caso, de uma França dividida e ocupada, colaboracionista ou posta em espera, escrava de medos e misérias, em absoluto desfocada de si, despida do mítico amor-próprio, entrevado por retóricas suicidárias. Décadas depois de morte envolta em dúvida (traição ou eficácia da máquina do terror?), o país quis-se espelhar-se nele e virou o homem do avesso para extrair herói, em construção exemplar e simbólica que colocou incertas cinzas no Panteão, esse altar sagrado do republicanismo laico órfão de rituais. André Malraux oficiou o momento, coreografado como poucos, em discurso inflamado. «Eis a marcha fúnebre das suas cinzas. Ao lado das de Carnot com os soldados do ano II, das de Victor Hugo com os Miseráveis, das de Jaurès veladas pela Justiça, que venham repousar com o seu longo cortejo de sombras desfiguradas. Hoje, juventude, pudesses tu pensar neste homem de modo a tocar com as tuas mãos a sua pobre face naquele seu último dia, tocando os lábios que não falaram, naquele dia ele era o rosto da França…» O relato da vida normal ficou para sempre tintado pelo esforço de construção do herói, com a velha ilusão de que cada percurso contém um sentido, o que o destino se encontra escrito em cada entrelinha, em cada gesto. A moralidade deste conto de acordar consciências está, contudo, na ética explosiva do indivíduo comum se erguer ao ponto de dizer não! Jean Moulin foi um de nós, apenas capaz de subir à norma para ver além do nevoeiro das circunstâncias. Ora essa louca capacidade não nasce por geração espontânea, aprende-se.

Cerveteca, Lisboa, quarta, 12 Maio

A agenda está feita toalha sobre a mesa entre garrafas. Ninguém diria que aqui se trabalha, mas assim acontece. O Marko [Rosalline] apresentou um pormenor, fulgurante digo-vos já, que dá unidade ao delírio das cervejas literárias, colocando a pressão no [Nuno] Saraiva que tarda, como habitualmente, em dar imagens às palavras dos contistas. Era ainda ocasião de provar o néctar-de-matar-sedes do João [Brazão], que reúne profundidade e leveza de modo que faz acreditar. Em quê? Na possibilidade, quem sabe do ser. Do sabor do saber. Uma bebida tem tanto de álcool como de esforço e partilha, de criação. Esse o assunto sério deste «Cadáver Esquisito», longamente bebido, desculpem, debatido. Cada sabor que se esconde nesta cerveja tem correspondência na embalagem, no logotipo, em cada conto, no que se vai desenvolvendo. O pensamento anda por aqui armado em canivete suíço, obrigando a revelar razões por detrás de cada gesto, de cada afazer. Saio daqui entusiasmado. E tocado.

Horta Seca, Lisboa, quinta, 13 Maio

Da primeira vez que li, há umas valentes décadas, este «Fadários», então com outro título, achei-o disperso, algo perdido no que trazia por contar, grávido de todos os «roman noir» e «crime novel» e neo-realistas de pendor surreal lidos à lupa pelo mano José Xavier [Ezequiel]. E soltando como perfume aquele negrume habitual, o melhor amigo do homem lúcido de tão perdido. Ou vice-versa? Agora celebro-lhe esse espalhamento, o sopro com que molda personagens em debandada de si próprios. Se a vida é beco sem saída por que raio nos consumimos em busca de sentidos, proibidos, obrigatórios, para lá dos cinco, antes do significado, além do fado? Ontem como hoje noto nele um levantamento das linguagens, as da língua e do corpo inteiro, que nem halteres ou navalhas, à maneira de Nuno Bragança ou, está claro, de Dinis Machado. E com fulgor que encandeia. Ora o palco só podia ser o Bairro Alto e algumas aortas das bordas, sendo como era o coração profundo de Lisboa. E não havia outra cidade. Nem outras passagens além dos bares. De súbito, sinto o tempo a pesar enquanto converso com a Elisabete [Gomes] por causa das capas, que nesta colecção oscilam entre paisagem e rosto, ainda que em um caso ou outro, a cara se faça lugar. O Bairro foi para mim sinónimo de noite e de conquista, de autonomia e aventura, não este dado adquirido do entretenimento óbvio e da turistagem feroz. Não havia multidões na rua, antes indivíduos espalhados ao comprido no consolo acre da serradura vomitada das tascas e dos bares. A capa deste romance mais negro que a noite escura poderia bem evocar as portas, os riscos de luz, mas não as multidões. Algures na página está hipótese entretanto trocada por outra mais forte (não liguem às gralhas que era esquisso), que faz do balcão o lugar-comum, mas agrada-me por demais o expressionismo destas cabeças perdidas.

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