Henry Fielding

«Diário de uma viagem (por Lisboa)» – preposição designativa – virar as páginas que «a Lisboa» é o título de um livro já com sombras no roteiro pois que se passa em 1754. As crónicas de viagem têm sempre muitos incidentes e uma narrativa que se procura factual para registo das sensações que vão dando corpo ao viajante. Mas Fielding, enceta-a por recomendação médica o que é bem diferente de uma aventura, mesmo assim, ela nunca perde o tónus de um velejar cheio de peripécias e Lisboa lá para o fim não é bem tratada pelo autor, cidade onde veio a falecer.

Quase sempre as ditirâmbicas histórias de cada um nos desinteressam na proporção que entusiasmam o narrador, os seres da primeira pessoa enfatizam acontecimentos que dão para nenhures e a menos que estejamos diante de alguém dotado para fazer da experiência pessoal um arquétipo da identidade colectiva, nos interessará então o que de si mesmo nos contar. Nós, que em versão oral já temos de escutar cada um no seu delírio pessoalíssimo, queremos que a escrita não reponha aquelas vozes mergulhadas em si mesmas pela inércia do egocentrismo. Mas a nós, pessoas singulares, acontecem-nos coisas dignas de registo e por isso o dever de participar no historial colectivo do relato dos factos. Partirei da sincronicidade.

O quarteirão dos ingleses a Campo de Ourique fora algures um local bonito e extremamente aprazível, a casa de Almeida Garrett estava aqui enquadrada mas foi destruída para urbanização habitacional de um político, menor, que estes políticos poderiam bem ter ido viver para Xabregas e outros locais. Arquitetonicamente feio, começou a destoar da paisagem que já vinha definhando com o fecho do Hospital Inglês que neste momento se encontra entaipado porque vai nascer uma coisa daquelas tão grandes que ninguém diz exactamente o que é, mas foi deste Hospital com encanto único, que algures via o cemitério de uma das suas janelas ladeado por frondosas árvores, e me parecia então nitidamente um puro jardim. Sempre passei por ele, mas por respeito à comunidade nunca entrei, mantinha-se solenemente um local de silêncio que a minha curiosidade não desejou desbravar, aqui tão perto, rasante aos meus caminhos, havia um local intacto onde só a lua me mostrava os contornos do arvoredo.

Acontece que por estranhos acasos tinha revisto nestes dias «Uma Viagem a Lisboa» a propósito de nada, apenas me veio de novo parar às mãos o singular livro, e com gosto o reli e foquei-me em algumas passagens, e quando na manhã serena de Primavera, após este revisitar, subia a rua do lado do Jardim da Estrela se me depara aberta a porta, entro então como que guiada por nuvens frescas matinais: estava no jardim! Entrara pela parte das lápides do século XIX que não davam aquela penumbra do sentimento da morte, e na rua que subia, o nome de Henry Fielding com uma seta para a esquerda, guiada assim, deparei-me então com um lindíssimo mausoléu sem arrebatamentos estéreis que a morte não precisa de coloridos vivos, de dignidade e beleza, impressionantes. A morte acontecera no dia em que nasci, o encontro, quase no aniversário de Fielding, e das rosas, sempre inglesas, um inefável perfume percorria o espaço mais bonito de toda a redondeza. Tudo estava à escala humana, desde as árvores que me pareciam frondosas vistas de fora, aos mármores, às flores, sem aquelas ameaçadoras raízes que quebram o solo no da Estrela ali ao lado. Tudo era gentil em meu redor. E mais encantos existiam; outro seu livro « Amélia». E naquela manhã, foi ali mesmo que resolvi um problema que a índole elegantíssima do meu interlocutor assim me facultou. Há dias que são como sonhos, somos guiados.

No reino da manifestação há que se ser abençoado, o mesmo que contemplado, pois que os felizes momentos são grandes demais para o nosso estreito entendimento, mas um poeta, por o ser, só o será de forma plena pela consciência de que as leis que o regem são bem diferentes das de muitos outros. As mais vivas coisas não fazem barulho. A Casa Fernando Pessoa ali ao lado é asséptica ao maravilhoso, e neste instante tive pena que ele não estivesse aqui, perto da sua primeira essência. Por momentos tudo faz sentido havendo um lado luminoso que não desiste de nós.

Parabéns, Henry Fielding.
Ele era parecido com Voltaire, talvez que estes seres se assemelhassem no seu registo temporal, e seria aqui encontrada a frase do entendimento “é preciso cultivar o nosso jardim”. – Sempre estivemos tão perto! Mas há sempre um tempo para os seres se encontrarem. E quem sabe ainda se desde sempre estamos unidos?!

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