Conjecturar vidas nos retratos

Um retrato trabalha em três frentes. Por um lado, investe na contenção da sequência temporal. Por outro lado, empresta vida a uma figura que se realizará através de um contorno inanimado. Por fim, propõe, no âmbito dessa construção (ou desse contratempo formal), a medida irreal que é dada, na dimensão linguística, à palavra eternidade. Esta tensão entre a duração segmentada e a promessa de abolição do tempo permite avaliar a sinopse de uma vida, como se um simples instantâneo pudesse decompor todas as intensidades e olhares que a comprimem.

Contar uma vida através dum retrato é uma caminhada entre a imagem e o poder da conjectura. Peirce reviu no conceito de “abduction” todo o imenso poder da conjectura. Para o autor, a conjectura é uma actividade humana da “thirdness”, o que significa que antecipa, prevê, constrói e projecta para o futuro a partir do que lhe é dado (e é, também, uma categoria que, como o autor sublinhou, está ligada ao “interpretante”, ou seja, encontra-se directamente conectada com o processar ilimitado das imagens que constituem, em cada instante, a encenação da consciência).

O poder de conjecturar não é apenas um poder de antecipação, ele é igualmente um poder de natureza poética, pois está ao seu alcance conceber o que antes nunca foi criado. Este lado criativo da ‘poiesis’ assegura a projecção de figurações originais e modelares sem tradução nas palavras. Trata-se de um misto de intuição e de previsão de algo que parece dado ou até óbvio. A conjectura é, pois, uma arte alheia à sintaxe conceptual e, por isso mesmo, capaz de trabalhar com hipóteses mais idealizadas do que racionalizadas. 
 
Todo este poder de organização, ao mesmo tempo sensorial, torna-se, a certa altura, metonímico, o que quer dizer que, devido aos efeitos da contiguidade, acabarão por criar-se na mente do observador diversas séries de realidades que decorrem das primeiras instruções geradas pela conjectura. Ou seja: o olhar coloca em movimento um leque vasto de informações que depois se aprofundam e detalham.

Este aprofundar conduz ao traçar de uma narrativa (mais circular do que linear) que, através de um processo poético-alegórico, nos acaba por sugerir algumas das intensidades chave da vida do retratado. Tal como Fernando Gil escreveu, “a conjectura constitui uma prática de liberdade. Ao fabricá-la o espírito manifesta-se – cito agora um filósofo, Fichte – como agilidade pura. A mente desarrima-se da tradição que a condiciona e enforma, para a sobrevoar e jogar a desarticulá-la”. Por outras palavras ainda: a conjectura “representa um momento breve de felicidade, entre o inconforto da situação cognitiva que a ela conduziu e a certeza antecipada que a sua comprovação evidenciará incompletudes”. Seja como for, a ausência de conjectura atrai desenganos, senão mesmo patologias.
 
Um exemplo curioso: em A carta roubada de Edgar A. Poe, o investigador policial Dupin procura no hotel onde habita o ministro D um importante documento desaparecido. Procura em cada milímetro sem se preocupar em estabelecer uma ordem prévia, como se procedesse a um inventário e não a uma selecção (“Vasculhámos o edifício inteiro, quarto por quarto, dedicando as noites de toda uma semana a cada um deles. Examinámos os móveis de cada aposento. Abrimos todas as gavetas possíveis” (…) “Nem a quinquagésima parte de uma linha nos passaria despercebida. Depois das mesas de trabalho, examinámos as cadeiras. As almofadas foram submetidas ao teste das agulhas. Removemos a parte superior das mesas…”). Pouco ou nada interessa o desenlace, embora, o ministro D ignorasse até ao fim o desaparecimento da carta e tivesse continuado a agir como se os segredos nela contidos ainda estivessem na sua posse. A ausência total de conjectura anda, deste modo, de mão dada com o desengano (o ministro D permanecia completamente nu na governação e no país, mas imaginava estar vestido a rigor).

Olhar um quadro e conjecturar é um ofício da poética e também um ofício mental. Um casamento arrebatado que, em princípio, habita todos os humanos com a devida naturalidade, embora com excepção para quem é polícia, sobretudo se tiver sido criado pela pena de Edgar A. Poe. Há lições que não se devem esquecer.


GIL, Fernando. Mediações- Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa. 2001, p. 286.
PEIRCE, Charles S.., Collected Papers of Charles Sanders Peirce, Vol II, The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts. 1978, pp.p. 211-213 (§8.313 e §8.315).
POE, Edgar A. A carta roubada. Editorial Presença. Lisboa. 2003 (1844).

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