O design é uma poética do corpo  

Olhavas para o piso de baixo e vias as cadeiras brancas, branquíssimas, com aquele rasgo iluminado que a penumbra empresta à semi-escuridão. Haveria, a par da certeza íntima de partilha, a distância como modo de conformação. O fascínio nasceu-te, a pouco e pouco, a teia levitou nos alicerces do estético e muito mais perto da aventura literária do que se possa pensar. Percebeste que a poética em estado de bruto – mesmo se criada pelos jogos do design – é sempre um movimento em que as conotações bloqueiam outras conotações. A certa altura já não há denotação: apenas conotações que não conseguem multiplicar-se de modo a expressarem uma mensagem que fosse final. O que a conotação propõe, nestes casos, é simplesmente o adiar de todas as conotações. Uma poética em estado bruto, portanto. Os objectos de design dispõem-se, nesta óptica de simplicidade, a tentar atingir o que eles mesmo são. Um desejo que visa tão-só um desejo. E foi esta adulação criativa que te inundou paixões várias. Algumas verdadeiramente inesperadas.
 
Por exemplo, o candeeiro Sputnik de Marco Macura que, com a leveza da sua haste tripla, evoca os sonhos de superação da era moderna. Uma peça nada orgânica, embora sugira a ideia de corpo. Mas um corpo em plena evasão, como se desejasse escapar-se à matéria que a originou. Algumas peças dos ‘fifties’, de que a Sputnik é pura paródia, já haviam mostrado empatia com as morfologias do foguetão soviético. Foi o caso dos candeeiros Luminator de Pier Giacomo e Lívio Castiglioni de 1955. De qualquer modo, na tensão entre ‘pertença’ e ‘não pertença’ a um tempo, Sputnik joga toda a sua atracção na intemporalidade. 
 
Entre outros exemplos poéticos, lembras-te da poltrona Showtime do catalão Jaime Hayón, uma peça com cordas vocais e de concepção maleável (alimentada pelo teor almofadado e pelo ritmo das pregas a partir de uma pele em polietileno rotomoldado) ou do Antibodi de Patrícia Orquila que recusava ser chaise longue ou divã para se afirmar como um esteio de lazer à base de alegorias florais (a lã e o cabedal davam corpo às pétalas que dominavam o assento reversível). O Antibodi foi e é um objecto de que Freud teria fugido a sete pés. Para lucubrar sobre a psicanálise, bastaria a sua presença deslumbrante. Também não resististe ao banco Spun de Thomas Heatherwick, uma recriação da espiral da vida que acumulava a função de um inesperado cadeirão (dirias tratar-se de uma metáfora das utopias que ainda hoje subsistem, muitíssimo discretas, nas letras pequenas do dia-a-dia). 
 
Por fim, as laranjas que se querem tocadas como as estrelas. Corpo de casca e magma suave, as laranjas são personagens doces, lânguidas por natureza e foram baptizadas para fazer parte de uma gramática do júbilo. Tudo isto se respirava no candeeiro Flower-Pot-Orange de Verner Panton. A peça sugeria uma esfera, um aflorado de gomos e uma pressentida liquidez. Adivinhaste neste candeeiro um ponto de encontro e uma grelha de partida para poder pensar sem metas, sem objectivos, sem pressas. Uma laranja é um projecto de vida realmente. Tal como escreveu Ibn Sâra de Santarém (1043-1123), um poeta que traduziste do Árabe: “Com a sua beleza/ não permite aos olhos que vejam outra coisa:/ parece-me, às vezes, uma chama ardente/ e, outras vezes, o crepúsculo dourado”.
 
Sabias perfeitamente que o design somos nós próprios, revisitados. Percebeste a tempo que certas formas e acenos estéticos acasalam, na casa do design, com uma democracia quase intuitiva que todos partilhamos. É por isso que o design não é apenas uma espécie de revestimento dos objectos culturais. Ele é sobretudo a dança que percorre o modo com que nos olhamos ao espelho, numa sociedade em que o corpo já não é apenas um organismo. O corpo passou a projectar-se para muito longe de si mesmo. Dizes uma palavra em Singapura ao mesmo tempo que o ipad te dá ao dedo a simulação de uma viagem celeste. E, no entanto, continuas serenamente em Portugal sentado numa cadeira que não é apenas uma cadeira. O som da palavra, o dedo, a viagem e o objecto ambíguo onde te sentas são partes de um polvo lúdico que nada tem de orgânico. Trata-se antes de uma construção bem mais vasta de que fazes parte e em que interferes. 
 
O design cresce nesse tipo de territórios férteis onde nos revisitamos sempre que agimos. O design quase não necessita de reflexão, por isso mesmo: ele impõe-se ao declarar-se. É por isso que escolhes este site e não aquele, é por isso que escolhes esta camisola e não aquela, é por isso que escolhes esta palavra ou esta metáfora e não aquela (o design também se gera por dentro da literatura, é verdade). E o mais curioso é que a repetição criada pelo design não parece cansar, nem perturbar. Por vezes, cativa, hipnotiza e toca liturgicamente no fundo da alma. E porquê? Justamente, porque o design possibilita a repetição sem niilismo, ou seja: sem negatividade, sem fardo, sem peso. É essa a sua função primordial: permitir incessantemente, e sem limites, o fluxo do desejo.

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