Farewell, My Dear

18/04/21

Completei hoje o segundo livro de poemas depois de Tristia. É curioso pensar que, antes do Valter o ter levado para a Porto editora este livro esteve em duas editoras renomadas, que não me deram sequer sinal de o terem lido.

Eu sentia, há anos, que depois deste volume pouco tinha a acrescentar na poesia. Não foi assim e fixei dois livros novos nestes últimos três meses, nos quais mudei absolutamente de processos e cheguei a uma simplicidade discursiva surpreendente em relação aos meus livros anteriores, como será patente na antologia Uma Ostra Questão, que sairá daqui a uns meses.

Estes dois livros abrem um novo veio, depurado (com alguns curto-circuitos), mas escorreram-me com uma facilidade que se por um lado me agrada por outro me parece maculada pela competência. Creio que a competência é inimiga da poesia e que a técnica não é suficiente.

Há um episódio curioso de Mallarmé. Um dia foi-lhe pedido um poema para ser recitado no casamento da filha de um amigo. Mallarmé cumpriu a encomenda. E felicita-o o amigo: “O poema é muito bonito e não é hermético, como te é habitual”. E responde o poeta: “Não tive tempo para o obscurecer”.

Sinto o mesmo: o desafio da poesia exige tempo, e não que cedamos “ao natural”. É preciso ser desconfiado, que lhe digamos que não. Só assim nos salvaguarda do aviso do René Char: pobre do poeta a quem a poesia não ensina o que ele não sabia de antemão.

“Como um esquife, morto de cansaço,/ o verso que me habilita à proporção.”, leio em Tristia, e fico espantado, só agora descubro a força da tensão que aqui se declara, é um dístico que como um pé-de-cabra abre uma poética, mas a proporção que nele se mete em movimento já está para além do apego aos géneros. Imaginar é-me preciso, mais do que a poesia.

Agora que tecnicamente faço o que quero, chegou como o Miró a hora de mudar de mão, de retomar a boa via de conduzir contra o trânsito. Continua a haver em mim uma criança que prefere assustar-se a confirmar-se.

Gosto dos dois livros que acabei, não é essa a questão. Mas depois deles já não me surpreenderia o que pudesse escrever, estaria a imitar-me, em modo de ronron. Eles estão no limite e funcionam muito bem; não lhes falta ritmo, sangue, humor, algum atrevimento, boas soluções, e mantêm uma vibrátil plasticidade verbal, mas detesto conhecer o terreno que piso.

Caos precisa-se, que as palavras cheguem ventiladas da esfera do indescernível, de lugares sem raízes, desorbitados, insusceptíveis de serem plintos para exercícios onde a medula estará para além de mudar-se o lugar das mobílias.

Cheguei ao brando conforto da “forma”, há agora que readquirir a potência do desequilíbrio.
Já estive quase dez anos sem escrever poesia, o jejum não me fez mal.

20/04/21

Reler Bandeira faz-nos sempre descobrir alguma coisa que nunca tínhamos visto antes, tão certo como os versos de Hafiz que o poeta recupera: “Amarei constante/ Aquela que não me quis”.

Desta vez, entrevi a poética, patente em Saudação a Murilo Mendes e em Nova Poética, a que o poeta foi fiel. O primeiro destes dois poemas fecha assim: «Saudemos o grande poeta/ Permanentemente em pânico/ E em flor.» ( – que aliás é uma variante dos versos de Dante: “o artista/ a quem, no hábito d’arte/treme a mão”).

O oximoro não só é exacto em relação ao Murilo como me parece definir o estro da poesia: dar flor no manto sacudido por um sismo de grau oito. No mesmo impulso bolçavam os samurais um haiku celebratório da vida durante o seu harakiri. Essa suspensão face ao desequilíbrio, seja o do interior, seja o do meio ambiente, resume o único tipo de “sageza” (intransmissível, que tem de se experimentar) a que o poeta pode aspirar.

Paralelamente, em Nova Poética, dum modo divertido, Bandeira prevê três géneros para a poesia: a do “poeta sórdido” (“Aquele em cujo poesia há a marca da vida”), a da “nódoa no brim” (um tecido forte de linho) – “O poema deve ser como a nódoa no brim:/ Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero” -, e o da “poesia é também orvalho” – com a ressalva que se segue: «Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem piedade.»

Paródia à parte, estes três géneros correspondem ao lírico (o orvalho), ao trágico (o brim), e ao dramático/realista (o poeta sórdido).

Porém, a lição que se tira do exercício da poesia em Bandeira é que não nos devemos ater a um género ou tema em exclusividade e antes planar no reconhecimento da topografia vária de todos os continentes. Por isso ele escreve em Arte de Amar: «(…) As almas são incomunicáveis/ Deixa o teu corpo estender-se com outro corpo./Porque os corpos se estendem mas as almas não.» sem temer contradizer-se depois, no poema Seio: «O teu seio que em minha mão/ Tive uma vez, que vez aquela!/ Sinto-o ainda, e ele é dentro dela/ O seio-idéia de Platão.» E assina rondós, ou redondilhas, ao mesmo tempo em que fazia poemas concretistas.

Esta liberdade, aliada à sua plena consciência da transitoriedade de tudo, levava-o a não se levar demasiado a sério (ainda que seja um poeta eminentemente sério) nem a deixar-se aprisionar por uma imagem, refém de si mesmo – capaz em páginas contíguas de ser cruel, amargo, cínico, terno, romântico, ou subversivo, e de de transmitir a lucidez da cal.

Tão diferente de alguns poetas que só querem ser um, o mesmo, de risca ao meio, mesmo que com vento. Daí que o velhinho e modernista Manuel Bandeira me seja dilecto e que a sua lição me faça abraçar um interregno.

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