A personagem

Há livros que são as personagens ou a personagem que o autor criou. É o caso de Lolita, de Nabokov, K. ou Gregor Samsa de Kafka ou ainda de Raskalnikov de Dostoiévski. Victor Tafner ao escrever «A Máquina de Criar Horizontes», criou uma personagem destas, que se tornam no próprio livro: Abib Justus. Trata-se de alguém que começa o livro como dono e gerente de um restaurante de luxo no bairro dos Jardins em São Paulo, mas que tem como sonho a reinvenção do lucro.

O livro começa assim: «Deus não fez o mundo em dois dias, mas também não levou uma vida toda, costumava dizer Abib Justus, agora preso no trânsito, precisamente na esquina da Augusta com a Paulista, na direcção dos Jardins. Fala através do celular, quase aos gritos “O vinho ainda não chegou? E estão esperando o quê, que eu chegue aí para tratar disso? Vamos começar a servir o jantar em uma hora e você me telefona agora para dizer que estamos sem vinho, que ainda não foi entregue? Tenho de ser eu a fazer tudo? Vá na Domus e pegue os vinhos, que eu mesmo vou ligar para lá agora e digo ao Rodrigo quais são… Sim, depois pago… Eu digo isso a ele quando ligar, sim. E vá depressa! Ah, e vá a pé até lá… Depois apanhe um táxi pró restaurante, para evitar o trânsito da Itu… Não posso deixar o restaurante, ninguém faz nada do que deve ser feito!” A última frase já não foi para o empregado, mas para si mesmo. Abriu o Baobá há pouco mais de um ano e tem sido muito mais trabalho do que lucro. Mas está tudo caminhando dentro do previsto, menos as dores de cabeça pela gritante incompetência da mão de obra deste país.

Há dois anos ainda estava em Londres, terminando a faculdade de gestão. Se preparou para tudo menos para suportar a incompetência da mão de obra brasileira. Saiu do país muito novo e, embora tenha feito um minucioso trabalho de pesquisa antes de abrir o restaurante, não estava preparado para interpretar o que se queria dizer quando se falava da mão de obra brasileira pouco especializada. Até ao “Sommelier” tem de estar continuamente a pedir para, depois de abrir a garrafa de vinho e dar a provar ao cliente, não pôr de novo a rolha na garrafa. A capacidade que os empregados aqui têm de fazer as coisas como sempre fizeram antes de aprender, excede tudo o que possa ser imaginado!»

O leitor vai conhecendo a personagem através de um narrador heterodiegético, que nunca sabemos quem seja. E percebemos que Abib vive a sua vida para ganhar dinheiro. Lê-se: «Não importa aquilo que se serve, se é num botequim ou num restaurante de luxo, pois o que importa é o lucro, o que importa é ganhar o máximo de dinheiro com um mínimo de investimento.» A vida de Abib é uma vida vivida dia a dia, hora a hora para ganhar dinheiro através do lucro. Mesmo quando descansa, a vida dele está sustentada por dinheiro e lucro. A fórmula que define o homem de negócios, segundo Abib, diz: «O lucro é a realidade.»

Identificando lucro com realidade, o sonho de Abib Justus não podia ser o lucro, mas a criação de uma nova economia, de um novo modo de lucrar, no fundo, o sonho dele era reinventar o lucro. Por isso, lê-se, à página 67: «Abib Justus vendeu o restaurante e mudou-se para Curitiba, para desenvolver o maior sonho de toda a sua vida: a construção de uma economia, de um mundo novo.» E que sonho é esse? A comercialização de um invento de um amigo, de quem ele seria o sócio maioritário: o descelular, isto é, «um dispositivo electrónico capaz de desligar o motor dos carros, quando um celular dentro do mesmo ligava.» E seria em Curitiba, porque Abib entendeu rapidamente não ser em São Paulo que poderiam ter sucesso. Por várias razões: muita gente para subornar, muita gente com muito poder, e a cidade não se preocupa com questões ambientais. Curitiba tinha tudo para dar certo: cidade pequena (para o Brasil), cidade modelo, cidade que tem a fama de ser uma das mais sustentáveis do mundo.

«Depois de acender o charuto, virou-se para o amigo e disse [acerca da cidade de Curitiba] “Esta fama e este marketing exige da cidade um contínuo investimento em energias e soluções alternativas, que em outras cidades nem sequer se cogita, que joga a favor da implementação do nosso invento”.»

A partir daqui, viajamos pelos meandros da política brasileira, pelo interior de um homem para quem nada mais existe a não ser a transformação do mundo em dinheiro. Leia-se à página 54: «Havia contudo várias etapas e seria necessário respeitar os tempos necessários para a implementação de cada uma delas. Antes de mais, obviamente, a criação da lei do descelular, no âmbito do OCR, fazendo com que todos os veículos no Paraná fossem obrigados a instalar esse dispositivo que bloquearia os seus motores, de modo a que não fosse possível dirigir e falar ao celular.

Com esta lei os novos carros seriam equipados em fábrica com esse dispositivo e os antigos teriam de instalá-lo em oficinas especializadas para isso. A fabricação do dispositivo ficaria a cargo de uma empresa criada por Abib e pelo seu amigo engenheiro, e o controlo das garagens especializadas a cargo de um testa de ferro. Mas não bastava somente criar a lei, ela tinha de ser aprovada pelo governador do Paraná. E é aqui que entra mais uma personagem nesta história: Rebecca Müller, que além de deputada estadual, era amante do governador e frequentadora do antigo restaurante de Abib, quando viajava a São Paulo. Uma coisa leva a outra e a lei foi aprovada em todo o estado do Paraná: a proibição de circularem viaturas sem a instalação do dispositivo que desligava o motor do carro, sempre que este estivesse ligado.»

A aprovação da lei e a consequente venda massiva de dispositivos, não apenas para os carros novos, que saíam de fábrica, mas a obrigatoriedade de os carros velhos irem instalar o dispositivo nas oficinas aprovadas pelo Estado para proceder à instalação do dispositivo, que pertenciam também a Abib Justis, trouxe um imenso lucro, mas que não era suficiente para a concretização do seu sonho. Ainda não estava criada uma nova economia. Estava apenas no início. O passo seguinte, foi criar um dispositivo que anulava o oficial, de modo a que as pessoas pudessem adquiri-lo ilegalmente nas oficinas de Abib Justus. Assim, começava-se a construir uma pequena economia, ainda que limitada ao estado do Paraná. Na próxima semana ver-se-á como Abib Justus leva a sua «pequena economia» a todo o Brasil.

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