Ao de leve

Há dias em que. E há aqueles em que não só. Dias em que eu. E de todos os dias há ainda aqueles que nem se sabe se são ou são piores. Posso até ter a dúvida. Parecem ou são de facto maiores porque cheios ou porque vazios e indecisos. E ainda os outros. E nem sempre sei se. Ou de que lado me desfiar, como os dias

Qualquer coisa sobre reticências. Sobre brasas.

Esboçar o gesto de abrir o tal caderno. Inquietações pendentes. E as fora de prazo. Voltar ao verso interior como um confronto com o reverso escondido por trás da nuca como uma sombra atenta e inseparável. E aos olhos plenos de ilusórias imagens reflectidas mesmo se não estão em frente, resta esse caminho por dentro. Dizem ou voltam mais tarde, como se anuncia num letreiro pequeno escrito à mão e à pressa de tal modo que ninguém repara.

O caderno, repentinas exclamações. Pontos da memória que não se fazem adivinhar previamente. Não na veemência. Somente vêm com uma espécie de força gravítica e o caderno porta custosa que já não se fecha. Resquícios da Pandora diária – mau é saber-lhe o nome.

Ele dizia pára de cantar para dentro. Irritava-o mas não era eu. O siamês mais velho que me doía à mesa. Ele, que era de si tão reservado, cantar e ser calado. Pelos cantos a ler. Uma concentração feroz como um sono profundo.

Tinha que se dizer três vezes. Aprendi que era uma coisa boa. Mas nem era cantar, mais do que um gemido que se escapava sem querer do interior da cabeça. Nem da garganta onde retido tropeçava nas cordas vocais, lento e custoso, nem do estômago. Talvez do nariz, no intervalo entre garfadas. Uma mistura de respiração e uma ideia de música que nem chegava a modelar-se. Por fora. Mais tarde entendi que nem sequer seria música, sei lá. Era tensão, o que sustinha a respiração e porque tudo era difícil de antever e ela escapava-se mesmo assim da força que queria retê-la na barriga. Por debaixo da mesa para ninguém dar por existir, talvez. E eu a olhar por debaixo das sobrancelhas. O queixo um pouco descaído a apertar as palavras. Um pouco triste em cada um em que, também sem querer que se visse, apontava os olhos. Um porque calou e o outro porque mandou calar. A mesa quadrada de lados equidistantes que se ligavam por linhas esticadas como elásticos em risco. Mas o ruído do motor do aquário gigante podia ser. Pela noite adiante. Enfio o queixo na gola da blusa das riscas. Não a dele mas igual, quase. Feita com as mesmas lãs e as mesmas mãos. Tudo quente.

Vêm sem saber como, imagens que queria assim ao de leve. Mas poisam como mantas fortes e pesadas que paralisam tudo por minutos. Ondas. E como um relógio parado, ficam nesse tudo trazido de longe pungente e quase insuportável.

Nenhum tinha culpa daquele encontro à hora errada entre o som que nem era para sair e a irritação trazida de mais cedo. Coisas encobertas e que saíam como aquele som e as que eram desviadas de intenção no alvo errado que se colocava ante os olhos, num dos lados da mesa quadrada. Há uma cadeia alimentar, com a infância na base mais inadvertida, mas há acima dos que estão acima, algo que os consome também. Às vezes invisível.

Queria folhear ao de leve o caderno mas cada página é um poço a mergulhar a pique o instante para longe. Um poço estreito com atrito e dor na queda provocada. Impossível voltar atrás. Mas é antes um túnel de que com a mesma verdade com que se entrou, se sai para outra luz por mais que de melancólica tonalidade se tenha colorido. E cobre-se com a tampa pesada do que não se pode esquecer nem quer lembrar. Um ponto de água subterrânea no logradouro do prédio. A produzir luminescências, erupções e salitres nas paredes.

Pensar nesses que se somam como periferias, sem os saber diferentes de outros dias. Outros como vulcões, terraços em ruínas e balaustradas em risco e um chão que não se tem em si para passos indecisos á beira. E aqueles que não. Em que se flutua na superfície e tudo chega sem aprofundar. Ao de leve.

Era talvez uma araucária gigante que procurei até hoje reconhecer em cada beira de caminho. Uma forma, a densidade das ramagens quase rentes ao solo e uma sombra. Porque tudo se distingue pela sombra. Que produz nas superfícies numa relação privada com a luz. Um abrigo pouco acima da franja da criança solitária, que brinca não sei a quê em silêncio quando a outra criança surge do portão esquecido aberto. Uma extensão de relva impecável e numa extremidade somente a árvore imponente. Uma memória de ficção como o são todas, de um filme, e da infância. A doer de tripla fantasia. Uma criança, paradigma do estar em si solitário na alienação de um mundo repleto de outros e cercada por um muro alto.

Não sei porque isto venceu na memória tanto de esquecimento. A pior coisa que se pode deixar avançar na memória, é a memória de sentimentos. Da infância porque é difícil, sobram árvores de pé quando os adultos falham. E tudo o resto. O acaso de um portão esquecido. Talvez a árvore impressionante. Ou só aquela linha de sombra.

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