Primeiro acto – Cena 5

Desatam a rir com a declamação de Valério. Quando acalmam, acendem um cigarro e servem mais vinho. Dão-se conta dos primeiros raios de sol que entram pela janela. Valério espreita o relógio e a sua expressão muda.

Gonçalo
Tens de ir embora.

Valério
Não devia.

Gonçalo
Não?

Valério
Não…

Gonçalo
O que é que se passa?

Valério
[hesitante]
Troco mensagens com os meus alunos de faculdade…

Gonçalo
E…?

Valério
Temos um grupo… professor e alunos… fala-se de tudo e mais alguma coisa.

Gonçalo
Caramba, estás lento… desembucha!

Valério
Calma, deixa-me estruturar o discurso.

Gonçalo
Confessa… não penses muito.

Valério
Não vou confessar nada!

Gonçalo
[rindo]
Porque ainda não fizeste nada… mas andas com o pecado às voltas na cabeça, seu maroto!

Valério
Mas qual pecado?!

Gonçalo
É tão óbvio! Estávamos às gargalhadas… reparaste que o sol estava a nascer, olhaste para o relógio e ficaste nini.

Valério
Nini? O que é isso?

Gonçalo
Nini… abatido, melancólico. Os teus alunos não usam essa expressão, nini?

Valério
Mas o que é que isso tem que ver com pecado?

Gonçalo
Tem tudo. Tens alguém em casa à tua espera… e tu aqui, a estas horas… pecado! Que eu saiba não vives com ninguém, portanto… Tens trabalho atrasado e tu aqui, a cavaquear e a emborcar à grande… pecado.

Valério
Culpa, queres tu dizer.

Gonçalo
Neste caso é a mesma coisa. Andas a trocar mensagens com quem não deves… continua.

Valério
Não é bem assim.

Gonçalo
Só pode ser isso… ficaste nini. Perguntei porquê. Disseste “troco mensagens com os meus alunos”.

Valério
Mas foi um engano… eu troco mensagens no grupo, mas também troco mensagens em privado. E são eles que me mandam mensagens… a propósito de trabalhos, ou exames, ou o que for…

Gonçalo
E?

Valério
Calma! [pausa] E… eu escrevi no quadro da sala os nomes e os horários de apresentação de uns trabalhos quaisquer, tirei uma fotografia e enviei para o grupo… apaguei o quadro e fui-me embora. Ao fim da tarde começo a ser bombardeado com mensagens no grupo… enganei-me, pelos vistos… havia duas apresentações à mesma hora, num mesmo dia. “Enganei-me, peço desculpa, fulano ou fulana tal apresenta na aula seguinte e não no mesmo dia, se estiverem de acordo”, respondi. “Tudo ok”, responderam eles… passadas umas horas recebo uma mensagem de um número que não tinha gravado… a mesma fotografia, com a mesma pergunta “Não se terá enganado?”… não respondi, não conhecia o número. Mas fiquei curioso, voltei a espreitar a mensagem e quem a enviou já a tinha apagado.

Gonçalo
[rindo]
Estás a inventar!

Valério
Não estou!

Gonçalo
Para já, é uma seca! Uma sequência de factos insípidos… depois enviei isto, depois eles responderam aquilo, depois eu fiz não sei quê, depois eles fizeram não sei que mais… Ainda por cima, és monocórdico e deixas todas as frases suspensas… e tararará… e tararará… e tararará… não há paciência!

Valério
[levanta-se]
Bem, vou-me embora.

Gonçalo
Oh, vá lá…

Valério vai até ao lava-loiça e começa a lavar o seu copo.

Gonçalo
Agora vais tu fazer birra?

Valério aproveita para beber água, volta a lavar o copo e deixa-o a escorrer. Vai até ao bengaleiro e veste o casaco. Põe-se a revistar os bolsos.

Gonçalo
Acaba lá a história.

Valério
Não!

Valério continua à procura de qualquer coisa nos bolsos do casaco.

Gonçalo
Não podes conduzir assim.

Valério
Sem chave, não.

Gonçalo
Vá, sentas-te, não bebemos mais e daqui a pouco vais embora. [pausa] Começo já a fazer o café.

Gonçalo vai até ao fogão de ferro e pega na cafeteira. Valério torna a tirar o casaco e a pendurá-lo. Põe as mãos nos bolsos das calças, contrariado, e descobre a chave do carro num deles. Gonçalo desatarraxa a cafeteira e passa-a por água no lava-loiça. Valério volta a sentar-se.

Gonçalo
Continua…

Gonçalo põe o café, atarraxa a cafeteira e põe-na ao lume. Vem sentar-se ao lado do amigo.

Valério
Peço desde já desculpa pelo conteúdo e pela forma… [pausa] Atalhando… umas horas depois, estava eu num site de engate… já me tinha esquecido do assunto… Sabes que as procuras podem ser baseadas em proximidade, certo? Local de trabalho, casa…

Gonçalo
Sei, avô!

Valério
Pronto… nos critérios de busca, para além do género, idade, interesses… tenho o local de trabalho. Não pus a faculdade, pus a zona, como é óbvio.

Gonçalo
Porquê?

Valério
Porque não quero que saibam onde trabalho.

Gonçalo
E a profissão?

Valério
O que é que tem?

Gonçalo
Tens a profissão no teu perfil?

Valério
Tenho.

Gonçalo
Professor universitário?

Valério
Sim.

Gonçalo
Então, se és professor e trabalhas na zona tal…

Valério
[interrompendo]
É óbvio! Mas não está lá o nome da universidade, não me apetece, pronto. Continuando… às tantas aparece-me o perfil de uma mulher… jovem… a fotografia não era muito boa, não dava para perceber bem como era a cara dela… acho que deve ter posto aquela fotografia de propósito, para não ser reconhecida… era uma aluna universitária ali da zona e tinha o número de telefone. Quando vi o número, percebi que era o mesmo da mensagem que tinha recebido e que entretanto tinha sido apagada.

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