O metro de Pequim

Entretinha-me a pensar se alguma vez iria deixar aquele local, se seria possível mudar complemente de circunstâncias. As metrópoles têm um poder atroz de nos sugarem para dentro e por dentro, parece impossível sair delas e parece impossível sair de nós próprios quando estamos nelas. As suas rotinas muito bem estabelecidas, o seu dia-a-dia optimizado com transportes públicos, salários, entretenimento, trabalho e lazer, boémia e cultura, soluções para todos os problemas. Uma cidade com vinte milhões de habitantes, altamente funcional. Gostava de caminhar na rua depois das minhas aulas com uma garrafa de baijiu e os phones nos ouvidos. Ouvia todo o tipo de porcaria de death metal a hip-hop caviar. Aquele cliché de querer sentir alguma coisa. Adorava a forma como olhavam para mim, como se olha para um carro a passar. Até pode ser um mazzerati novo – e havia vários por todo o lado – mas o interesse dura alguns segundos, fica-se a pensar naquilo, depois vê-se um monte de coisas completamente diferentes a seguir como scooters em contra-mão, dezenas de bicicletas acumuladas à entrada de um metro, uma senhora a vender batata doce assada. Uma estrangeira com baijiu na mão, a contemplar tudo, presente e simultaneamente alheada com a música nos ouvidos, a caminhar aleatoriamente. Gostava de caminhar sem saber para onde ia, nem norte nem sul, caminhar até não sentir as pernas, até suar debaixo do casaco de ski para as temperaturas inferiores a zero. Pergunto-me como me percepcionavam os transeuntes chineses, mas acredito que pensariam nesta imagem de mim durante dois ou três minutos, fariam um breve julgamento, voltavam aos seus problemas. Sim, a mega metrópole tem soluções para tudo menos para a indiferença abissal que é preciso cultivar para nela se sobreviver. Não se pode ter demasiada pena, não se pode ter demasiada inveja. É necessário um estoicismo de néon em edifícios gigantes prolongados no horizonte, infindáveis à vista. Os edifícios e depois o céu. Arranha-céus que são muralhas, não sei se estas também defendem o país das invasões estrangeiras, parece-me que fazem o oposto: convidam os foragidos a explorar a imensidão de possibilidades que ela apresenta. A reencontrarem-se ou a reconstruirem-se.

Todos os poetas que ali conheci escreviam longos poemas sobre o metro. Como é possível descrever uma mega metrópole sem se romantizar o metro de 618 km, um tráfego de 2180 milhões ao ano? A Jennifer tinha um trabalho poético só com frases em inglês das t- shirts do metro “Kate Moss and Pizza Slices”; “My ex died”; “Never say die, believe in yourslef”; “hang some”, etc. O meu trabalho poético “linhas de metro” tinha sido composto para uma performance com música e utilizava o metro para descrever o grupo de artistas underground que faziam parte do meu ciclo de amigos. Descrevia uma história de sedução. Falava de alguém ambicioso, que não se importava de recorrer a qualquer método para extrair das pessoas aquilo que pretendia, mesmo que isso passasse por seduzi-las e abandoná-las aos seus sentimentos.

Artistas que passavam por ali sem ali pertencerem. Era impossível não falar do metro. Depois de caminhar com o baijiu na mão, se estivesse completamente perdida, não tinha qualquer problema. Pegava no telemóvel e apanhava um didi para casa. Uma das estações de metro que apanhava com frequência tinha uma entrada com duas escadas rolantes nos dois sentidos: subir e descer. Por cima de cada escada havia um painel que indicava um visto verde, significava que era a direcção para descer para o metro e outro que tinha uma cruz vermelha, para não se ir distraidamente pela escada rolante que sobe em vez de descer. Esta estação em específico tinha um dos sinais avariados. Ambos os painéis tinham o símbolo de “proibido”. Um deles não era proibido. Todos os dias me entretinha a tirar fotos às pessoas que iam pelo falso “sentido proibido” a apanhar o painel e as pessoas a seguirem o seu caminho, ignorando os sinais vermelhos ou todos os painéis, vermelhos ou verdes, em geral. Parecia-me uma metáfora perfeita para a vida na China.

Confuso é um país com metade da população daquela cidade todo à beira-mar. Confuso é apanhar um pássaro de metal gigante que nos transporta para o outro lado do mundo, duas ou três vezes por ano. Tudo isso parece fantasia.

A mente prega-nos tantas partidas, que não seria de espantar se toda a memória fosse também outro truque. Percebemos perfeitamente a existência dos aviões que fazem voos intercontinentais, mas não conseguimos perceber o porquê da nossa própria existência. Somos como as oito horas do fuso horário que se perdem entre Pequim e o Porto e que ninguém sabe para onde vão. Por vezes penso que vão para o céu. Por cima das nuvens, há uma realidade onde estas oito horas ainda existem. Há uma parte de mim que acredita que alguém vive naquela dimensão, em meu nome. Fomos programados para ser livres, não deixar que a nossa geografia nos condicione, as nossas relações humanas não nos condicionem, as nossas crenças e valores não nos condicionem. Fomos programados para não ter forma e esse é um privilégio tão grande quanto a responsabilidade de navegar num mundo infinito sem nunca nos perdermos – o que é impossível. O metro vai sempre a abarrotar em hora de ponta mas o silêncio impera. Todas as manhãs somos uma massa homogénea optimizada na selva urbana. Não temos forma. Mas temos todos que chegar a algum lado.

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