Na Poesia de ser Macaense

Por Alfredo Gomes Dias

Dentro de cada um de nós, o conhecimento de si e do sentido que emprestamos à nossa vida é, talvez, o exercício mais exigente, porque mais doloroso, mesmo quando o revestimos sob a forma de poesia. E se esta ideia, assumida como verdade, é generalizável a qualquer ser humano, num qualquer ponto do globo, adquire um novo significado quando se refere a um macaense, aquele ser “entre dois polos / que se atraem / e repelem”, principalmente quando lhe acrescentamos a sensibilidade e a racionalidade de ser mulher.

Quando Cecília Jorge oferece a Macau um livro de poemas escritos ao longo de uma vida, devolve à cidade o sentir e o pensar que a acompanharam nas ruas construídas de vivências múltiplas, entre amores e desamores. Neste quotidiano, parte ao encontro das suas origens, ao subir aqueles cinco degraus que a “levam ao casarão / Onde crescem raízes / agarradas a velhas paredes / que arrostaram tufões”. Recordando o “bisavô Jorge”, reconhece a felicidade de “ainda ter conhecido o espírito / que pairava neste chão”, transportando sentimentos que criam raízes nas memórias e na terra onde se mistura “A humidade o cheiro os meandros / da alma indómita / que remonta ao passado”.

Contudo, não são as origens nem as memórias condições bastantes para que veja facilitada a tarefa do conhecimento de si, quer como pessoa, quer como parte de uma comunidade que mantém uma “Porta aberta para dois lados/ de entrada /sem saída”. Para Cecília Jorge, já vai longe o tempo em que sentia necessidade de se definir como macaense, assumindo finalmente que este ser macaense é, em si mesmo, uma indefinição, “que te (in)defines / pelo não ser bem / que também não és bem…”. Deste modo, o ser passa a reconhecer-se pelo não-ser, porque não é possível (re)conhecer-se. Nesta incógnita, que hoje paira sobre toda a comunidade, as suas palavras alargam aquela indefinição a Macau, que sempre a ajudou a identificar-se, consigo e com os outros. Por isso, “sei onde estava / não onde estou / Não sei por onde vou / por onde não vou”. Descentrando-se da terra, deixando secar as raízes que sempre deram sentido à sua vida, de dádiva e partilha, a macaense valoriza-se pelo que é, na sua individualidade, afirmando “Sou / apenas / mas sou / quanto baste”. E, num último esforço de encontrar-se, procura no Mundo aquilo que Macau já não oferece, questionando “Donde venho? De que lado / do Mundo?”. Uma questão que, no presente, só pode encontrar resposta num passado longínquo e num futuro por construir. Parar no presente, para “recarregar / energias para / retomar a rota do vento / e cumprir o destino”. Anuncia-se a esperança num futuro carregado de um presente de incertezas.

Sempre fez parte do ser macaense a procura, numa “Miragem / de olhos postos no Ocidente”, das suas raízes mais profundas, que Cecília Jorge reconhece como “berço secular / da eterna presença”, embora longínqua, mas que emerge na “confluência de civilizações” que transformaram Macau no “patamar” de dois mundos “harmonizados / num só”. Talvez resida aqui o sinal de esperança antes enunciado, embora assente nos “Pés de barro da lusitanidade”. Fragilidades de uma origem que se prolonga no acto do regresso, anunciadas nas “caravelas de vela solta / que se vão rasgando / no retorno à Pátria”. Desta síntese imperfeita e, mais uma vez, indefinida, fica como garante a “Língua materna Mãe”, aquela língua que nos embala “num fado de Amália / até ao finar da vida”. Nesta língua, que na casa e nas ruas se fez arma, apresentada como um “Lago fecundo sem margens / Como o mar que banha o teu berço”, encontramos uma das razões de querer partir, uma vontade representada num relógio que teima em impor uma lenta marcha do tempo, demasiado lenta para quem deseja bater “as asas / no devaneio / que me leva para / longe / daqui”.

Já não é suficiente o ser que se confunde com a terra, o “reinol aventureiro” que se cruzou com a “mãe asiática”, num caldo de cultura com cheiro a canela, criando “ternura e sensualidade / no recato de uma alcova” e lutando “contra as monções”. Já não é suficiente acreditar que se vive numa cidade “maior que o mundo”, onde era possível uma “existência singela / humana partilha / solidariedade / e amizade”. Já não é suficiente sentir Macau “na curva do Chunambeiro / que já nem curva é”, obrigando a macaense, mulher e poetisa, a sentir “a alma da urbe / viva”, a transformar-se num espírito solitário que vagueia e pisa um “chão inexistente”. Junta-se, então, a angústia e a desmotivação – “Nem chorar / consigo” –, que se vivem e sentem numa profunda “dor indizível dor abstracta fugidia / dor infinita” que, sem matar, “despedaça e / chaga sem sangrar”. Macau vai-se esmaecendo nesta dor de quem, como muitos, como Cecília Jorge, desconhece a terra que sempre chamou de sua, como se, na velha Baía da Praia Grande, ainda fosse possível sentir uma “aragem / que nos embalava” ou ver “Raios de sol em despedida”.

É na rua que persistem as memórias de uma Macau que se perde nos dias que passam, nos “jasmins / que espalhados ao sabor do vento / nos perfumavam as madrugadas / e os crepúsculos”; no “sabor dos fritos / comidos na rua”; nos macaenses “em volta de / uma só / taça de chá”. Estas são algumas das memórias que persistem numa cidade em mudança permanente, abandonando o nome de porto de abrigo. Como a rua da “Felicidade sequestrada / num nome”, também Macau se entregou a um futuro sem passado e, por isso, com um presente comprometido na auto-negação de si própria, comprimida “em caixotes / a tanto-por-metro-quadrado”, impedindo a mulher da cidade de desfrutar da “grandeza / de um céu distante”.

Ao ser macaense, agora sentindo-se em terra alheia, sobra apenas a solidão, mesmo quando se mistura “num mar de gente / tão transparente / e frágil / que se esquece”. Uma solidão que se dilui na cidade, na “Ficção criada pelos portugueses”, que “nem os próprios dela / se apercebem”. Fica apenas a solidão e a memória.

A memória
esmorece
e se apaga
no vazio.

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