O vírus olímpico

Primeiro por manifesta influência familiar e depois por opção, a prática desportiva foi desde cedo importante na minha existência, apesar das minhas limitadas habilidades. A ginástica ocupou grande parte da minha infância e depois passei a desportos colectivos e com bola, tendo aderido à grande família do andebol português, onde permaneci por uns 10 anos, só depois de ter comprovado a minha manifesta incompetência para a prática do desporto-rei. Passei para o pavilhão em vez dos ar livre e a usar as mãos em vez dos pés, mas na realidade o jogo até era semelhante. Eram tempos em que acompanhava com regularidade os Jogos Olímpicos, na altura relativamente fáceis de entender: que modalidades se praticavam ou não, que atletas podiam ou não participar, enfim, até a Guerra Fria que se jogava naqueles dias – e os inerentes boicotes políticos aos Jogos – eram coisas inteligíveis, mesmo para crianças ou adolescentes que seguissem o assunto com algum interesse e dedicação.

Não viria a ser assim depois: hoje estou muito longe de perceber o que se passa nos Jogos Olímpicos, porque são aquelas as modalidades praticadas, porque estão outras de fora, que critérios estão definidos para a participação de atletas, agora que a divisão entre “amadores” e “profissionais” é tão dificilmente aplicável, porque há critérios diferentes segundo a modalidade, enfim, toda uma série de questões regulamentares que certamente condicionam a competição e os resultados mas que deixaram de ser facilmente inteligíveis, requerem um certo estudo para mim incompatível com a simplicidade das regras que historicamente tornaram globalmente tão populares tantos jogos desportivos. Deixei-me de Olimpíadas, portanto, e passei a seguir campeonatos nacionais e mundiais, competições simples e de regras claras que ainda consigo acompanhar com a minha limitada disponibilidade para o estudo de normas regulamentares que não me dizem directamente respeito. De resto, o romântico, generoso e inteligente princípio de que o que importa é participar há muito tinha sido erradicado do desporto em geral e do Olimpismo em particular.

Foi no Japão que me reconciliei com os Jogos. Foi logo na primeira visita ao país, quatro meses no Verão de 2012. Com a diferença dos fusos horários, as competições em Londres podiam ser vistas em directo na noite japonesa e quase todos os cafés, bares ou restaurantes que tivessem televisão davam grande importância ao assunto. Não deixava de haver alguma motivação nacionalista a determinar o interesse nas modalidades que se acompanhavam, mas estava o Japão representado em tantas modalidades, com homens e mulheres, que era grande a diversidade de opções. Mesmo com as insuficiências e barreiras comunicacionais inerentes à língua, não foi difícil perceber o genuíno entusiasmo e apoio popular às equipas e atletas e também – muito mais importante – a aceitação generosa da possibilidade de derrota, quando muito manifesta num certo desinteresse pelo resto da prova depois da eliminação da participação japonesa, mas em nenhuma circunstância orientada para manifestações de ódio, xenofobia ou violência verbal contra adversários e equipas de arbitragem que vão caracterizando – aparentemente cada vez mais – as competições desportivas.

Quando se jogaram os Jogos de 2016 já eu estava no Japão mais regularmente e voltei a acompanhar os Jogos, desta vez no continente americano e com horários mais difíceis, com muitas provas a disputar-se na minha manhã.

Seriam Jogos de grande impacto político no Brasil, que queria transformar o relativo sucesso económico e social dos anos anteriores numa projecção internacional sem precedentes, a que estas competições globais aparecem hoje inevitavelmente associadas: foi também o Mundial de futebol de 2014, ambos vividos já no contexto dos impactos implacáveis da crise económica global que se seguiu à crise financeira de 2008. Com maior ou menos demagogia ou manipulação mediática, em vez de projecção internacional estes eventos contribuíram para intensificar a revolta e a oposição popular a um governo em dificuldades para lidar com o regresso da crise social e históricos problemas de corrupção. Os Jogo, enquanto super-evento mediático, contribuiriam então para o declínio da popularidade dão PT e a emergência deste novo poder que ainda vigora.

Em 2020 teria oportunidade de acompanhar pela terceira vez os Jogos Olímpicos em território japonês, com a particularidade de ser Tóquio a cidade escolhida para os organizar, essa fabulosa metrópole com 37 milhões de pessoas em intenso movimento. Como é norma actual, também aqui os Jogos se assumiram como uma gigantesca intervenção de renovação urbana e promoção internacional, com investimentos de visível impacto ainda muito longe de se começar a competir. Os principais estádios e os edifícios da aldeia olímpica estavam prontos ainda no final de 2019, mais um significativo desenvolvimento na baía de Tóquio, um oásis de tranquilidade, amplas avenidas, espaços verdes e transportes com pouca gente, numa cidade intensa em que o normal é o contrário: multidões aceleradas em espaços relativamente exíguos, transportes cheios e infra-estruturas urbanas pesadas. As estações de comboios e transportes metropolitanos foram objecto de renovação profunda, passando a ter informação digital e multilíngue a facilitar a vida a pessoas como eu, e novas torres de escritórios, hotéis e centros comerciais, que por aqui as grandes estações são, na realidade, pequenas cidades – ou não tão pequenas, já que as maiores (como Shinjuku ou Shibuya) movimentam mais de 3 milhões de pessoas por dia.

Foi com alguma supresa que assisti a esta gigantesca renovação. É verdade que se trata da maior área metropolitana do mundo, mas também é verdade que é das únicas em que a população está a decrescer, apesar do contexto global em que as pessoas continuam a concentrar-se cada vez mais nas grandes cidades. Esta excepção de Tóquio tem a ver com o envelhecimento populacional que caracteriza o Japão há várias décadas mas nem assim constituiu impedimento para que se investisse tanto em novos edifícios e infra-estruturas para diferentes tipos de uso, aproveitando-se, naturalmente, para melhorar os aspectos da ecologia urbana, dos modes de transporte e da ocupação dos espaços públicos. Como visitante, só posso agradecer.

Em todo o caso, com ou sem realização dos Jogos este ano, o impacto desta operação parece inevitavelmente longe das intenções: todas as intervenções urbanas associadas a este evento – e também à Expo-2025, em Osaka – estão fortemente orientadas para a promoção internacional do país, não só do ponto de vista turístico, mas também do ponto de vista da localização de empresas e atração de população estrangeira jovem e qualificada, um papel que o Japão já teve mas no qual foi perdendo protagonismo em relação a Singapura, Hong Kong ou mesmo Seul, actualmente o mais importante ponto de ligação para os transportes aéreos entre a Ásia e o resto do mundo. Além do evidente impacto do covid-19, que na melhor das hipóteses permitirá a realização de umas mini-olimpíadas em 2021, o contexto actual parece ser de de-globalização, não só turística mas da generalidade da economia. Não parece ser o tempo dos grandes eventos de promoção internacional. Também não parece bom tempo para Jogos Olímpicos, agora ou num futuro próximo.

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