O elusivo capitalismo

“Capitalism is facing at least three major crises. A pandemic-induced health crisis has rapidly ignited an economic crisis with yet unknown consequences for financial stability, and all of this is playing out against the backdrop of a climate crisis that cannot be addressed by “business as usual.”
Mariana Mazzucato
Capitalism’s triple crisis

 

A defesa é muito mais importante do que a riqueza. Adam Smith marca assim os limites da economia política, no momento do seu nascimento. Ainda hoje, o mercado tem o seu único limite na segurança nacional, o domínio arcano dos grandes concorrentes na arena global, os Estados Unidos e a China. As duas potências fundem as esferas económica e política, através das decisões do Partido Comunista Chinês (PCC) e dos aparelhos de defesa e segurança nacional dos Estados Unidos. Pequim e Washington vivem um conflito acalorado de geo-dirreito, ou seja, uma guerra jurídica e tecnológica travada através de sanções, utilização política de instituições internacionais e bloqueios aos investimentos estrangeiros. O “capitalismo” é um termo elusivo. É um conceito que utilizamos por conveniência, devido à falta de alternativas, mas também devido à estratificação histórica e filosófica que o caracteriza.

É impossível evitar o capitalismo, mesmo para aqueles que ainda o rejeitam em retórica, tais como a China. É de recordar as palavras de Alan Greenspan, o ex-chefe de longa data da Reserva Federal, numa entrevista a um jornal suíço no Outono de 2007 quando afirmou “Temos sorte, pois graças à globalização, as decisões políticas nos Estados Unidos foram em grande parte substituídas pelas forças do mercado global. Para além da segurança nacional, faz pouca diferença quem é o próximo presidente. O mundo é governado pelas forças do mercado”. São palavras poderosas, ditas num momento significativo (e infeliz, dada a sequência) por alguém que foi “o” banqueiro central de outra época. Uma paisagem de há alguns anos atrás que agora parece estar a algumas eras geológicas de distância.

A liderança do banco central é um trabalho que historicamente tem exigido silêncio ou a obscuridade. As palavras de Greenspan, tão peremptórias, confiam às forças de mercado o “governo” político-administrativo do mundo, daí a produção de decisões e políticas públicas. Acrescentam a advertência de “segurança nacional”, e assim, talvez involuntariamente, voltam a uma ambiguidade histórica, fundamental para nós, que é o peso da segurança na construção da economia, o espaço político de quem decide o que é segurança e o que não é, moldando a decisão através de medidas legais. É uma decisão essencial da sociedade comercial, pelo menos desde que Adam Smith em “A Riqueza das Nações” recordou a primazia da defesa sobre a riqueza.

É uma decisão que também acompanha os capitalismos contemporâneos como uma sombra, no pêndulo entre Estados e mercados, particularmente se olharmos para a impotência geopolítica do cenário europeu e as potências presentes na cena internacional (em primeiro lugar, os Estados Unidos e a China). Este é então o destino da frase de Greenspan, o discípulo de Ayn Rand, o “mágico” dos bancos centrais, aprisiona-se no odiado Manifesto de Marx e Engels. Ele assemelha-se ao inevitável “mágico que não consegue dominar os poderes do submundo que conjura”. A investigação sobre o capitalismo político deve entrelaçar três vertentes como a história do Estado, e as formas como o poder estatal é declinado nos aparelhos burocráticos, nos confins do político e do económico; as ordens jurídicas com que os mercados interagem; a história do espaço em que o capitalismo é codificado, a Europa, e a história presente e futura em que o espaço europeu tendo perdido o seu papel de sujeito da história, se torna a periferia ou o objecto de divisão dos outros. Em particular, os poderes do capitalismo político, os Estados Unidos e a China, empenharam-se num combate de leão com armas legais.

O sulco vem dos juristas que foram mais longe no seu confronto com a filosofia, identificando os elementos de crise do nosso tempo. A primeira lição que se retira do académico e político italiano Guido Rossi, que, além de ter raciocinado sobre a última crise do capitalismo nas suas obras, reconheceu por um lado a dificuldade das definições, por outro a importância do evento não só jurídico-económico, mas também histórico-filosófico, que nos conduz “da Companhia das Índias à Lei Sarbanes-Oxley”. Só com esta perspectiva histórico-filosófica, no método de Rossi, é possível ler o direito comercial e as suas transformações, tendo também em conta as questões políticas e sociais colocadas pelo antitrust.

O outro horizonte fundamental vem das obras do académico e advogado italiano Natalino Irti, que antecipou a mesma revelação candidata de Greenspan, identificando a ambiguidade entre a ausência de fronteiras da economia e a ancoragem a lugares próprios do direito. Sem ver em “geo-direito” a simples superação dos espaços, mas identificando o problema do confronto entre o horizonte político e os poderes económicos, bem como os acontecimentos da sua negociação. O capitalismo, se visto nestes termos, pode ser considerado um problema de geo-direcção, na esteira identificada por Irti, a fim de reler e expandir as consequências involuntárias da própria declaração de Greenspan.

É este o assunto essencial e não outros elementos específicos como a origem do pensamento económico em relação à ascensão do estado moderno (“a invenção da economia”), nem a génese do capitalismo, o estatuto filosófico da ciência económica, o peso das finanças na actual globalização, o papel do euro, a história do chamado “neoliberalismo”, o futuro do trabalho, pois sobre estas questões existe uma vasta e controversa literatura. A questão-chave é sobre a relação problemática entre capitalismo e segurança, que conduz a confrontos geo-jurídicos com amplas implicações no presente e no futuro próximo, e tem recebido menos atenção, mas é mais importante para a compreensão do conflito China-Estados Unidos.

Aqui está então a razão essencial para esse entendimento, e ao mesmo tempo a limitação das suas reivindicações. O “capitalismo político” na nossa época pode ser definido por características como a interpenetração da economia e da política num “todo” orgânico, que nos sistemas de autoridade musculada coincide com a presença de um partido-Estado articulado, enquanto nos sistemas democráticos passa pela intrusão na liberdade económica das burocracias de segurança e dos poderes de emergência; a utilização política do comércio e das finanças, num cenário em que os elementos competitivos coexistem sempre com a interdependência económica; a utilização da tecnologia, e das empresas tecnológicas, para fins e vantagens políticas e dentro de conflitos geopolíticos e a designação de indústrias e empresas estratégicas como “inimigos” devido à sua localização geográfica.

Estas indústrias e empresas são protegidas e opostas não só através de participações, mas também e sobretudo através de directivas políticas, burocracias estatais dedicadas, regulamentos especiais, o julgamento da economia com base na segurança nacional, e o seu alargamento conceptual e operacional, através de instrumentos de “geo-direito”. É com base nestes elementos, que o “capitalismo político” é praticado pela China e pelos Estados Unidos, os dois principais actores económicos e geopolíticos do planeta. A extensão e o poder do capitalismo político merecem, mais atenção do que outras expressões de capturar tudo o utilizado para designar a ordem económica mundial. O chamado “neoliberalismo” não ajuda totalmente a enquadrar os fenómenos com que estamos a lidar. À luz destas considerações, é necessário investigar a construção da economia política como um “ramo da ciência dos legisladores e estadistas”, de acordo com a opção de Adam Smith. De particular interesse é o renascimento das interpretações de Adam Smith no contexto da crise. Especialmente a leitura chinesa. Na apropriação por parte dos líderes chineses do grande pensador escocês, a ciência do legislador torna-se parte de um novo capitalismo político.

É a realidade do capitalismo em que coexistem as forças do mercado e a omnipresença política do governo chinês, detentor da “mão visível” e do monopólio da força no Império do Centro. O equilíbrio específico entre “mão invisível” e “mão visível” mostra a sobrevivência da violência no que diz respeito ao império dos mercados. É ainda necessário comparar Adam Smith e Carl Schmitt, a fim de analisar os problemas da sociedade comercial e a sua relação com os conflitos. A “Riqueza das Nações” e “Os Nomos da Terra, O: No Direito das Gentes do Jus Publicum Eruropaeum” parecem responder a duas antropologias incompatíveis, enunciadas noutras obras como empatia, por um lado, conflito, por outro. Isto está interligado com o chamado “problema de Adam Smith”, ou seja, a suposta incompatibilidade entre o papel de simpatia na “Teoria dos Sentimentos Morais” e o da mão invisível em “A Riqueza das Nações”. O que está realmente em jogo, é a relação entre comércio e segurança.

A sociedade comercial de Smith é a dissolução do jus publicum europaeum de Schmitt. Ambos lidam com a era da descoberta e as contradições do comércio como um factor de poder e de exclusão. O conflito sobre o comércio não pode ser divorciado da história da ascensão e declínio das grandes potências, razão pela qual existe uma crítica às formas de “romantismo geopolítico” de Carl Schmitt que caracterizam a sua interessante leitura instrumental dos impérios britânico e americano (através dos escritos de Alfred Thayer Mahan). É importante também a centralização antes no problema europeu. Seja o que for, a União Europeia foi derrotada pela crise que começou em 2007. Tentativas de fazer história da crise, como o livro de Adam Tooze “Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World” reflectem este facto flagrante, confirmado pelas reconstruções autobiográficas dos protagonistas que viveram a crise como decisores políticos económicos.

A crise parece ter confirmado que o Estado Providência, o grande caminho económico e social europeu do pós-II Guerra Mundial, foi uma excepção, não a norma na história do capitalismo. Thomas Piketty, no seu livro “Capital no Século XXI”, de grande sucesso, deve ser um dos focos. Apesar do seu título, o livro de Piketty está intimamente ligado ao século XX, entendido como o “século social-democrata” (Ralf Dahrendorf). É sempre difícil, mesmo no século XXI na Europa, levar a sério a citação profética shakespeariana do economista e académico italiano, Raffaele Mattioli, do início da década de 1960 de que “os milagres acabaram”. O que significa viver após milagres, para aqueles que acreditavam que a “excepção” do Estado-Providência do pós-II Guerra Mundial era a progressão normal e inevitável do mundo? A demografia europeia está em declínio, em comparação com os outros pólos de crescimento e com os Estados Unidos. Alguns países europeus, além disso, estão na vanguarda deste processo, porque há mais pessoas com mais de sessenta anos do que com menos de trinta anos.

Os Estados europeus não estão a convergir, mas estão a separar-se no seu interesse. Os seus horizontes estão a afastar-se e dada a fraqueza do aparelho militar e da relação crucial entre defesa e indústria (as longas “férias da história” vividas no intervalo após a II Guerra Mundial), a capacidade da Europa para gerar inovação em relação aos outros é reduzida. É importante repensar e aprofundar os diferentes pontos de vista da grande questão do capitalismo dos últimos quarenta anos, como o problema chinês, na relação com os Estados Unidos. Há ainda que relembrar das “características chinesas”, tais como missionários americanos e burocratas chineses, a fim de retraçar a controvérsia sobre o atraso e a natureza do capitalismo chinês, de Max Weber a Xi Jinping, passando por Deng Xiaoping e Zhu Rongji. Os técnicos ocidentais são abandonados para um confronto com o pensamento e as acções dos grandes burocratas do nosso tempo que abraçam o capitalismo e que são os quadros do PCC.

O capitalismo chinês, apesar das suas dificuldades estruturais, resiste às perspectivas repetidas do seu colapso iminente, refuta as profecias sobre a ascensão de uma classe média contrária ao controlo do PCC, reescreve a relação entre a autoridade e a difusão da inovação. Acima de tudo está o elemento central e fulcral do casamento entre capitalismo e burocracia como a continuidade multi-milenar da “burocracia celestial” estudada pelo académico húngaro Balázs Kovács e ampliada pelo PCC. É o mandarinato que também pode ser encarnado num centro de transferência de tecnologia ou num laboratório de computação quântica, refutando a ilusão da impossibilidade de inovação num sistema como o chinês sem deixar de concluir aplicando o inverso de uma das categorias do filósofo político francês Alexandre Kojève aos investimentos chineses em infra-estruturas e à sua influência à escala global. É ainda de interesse o papel dos Estados Unidos no capitalismo político que a começar por Joseph Schumpeter como o “profeta da inovação”, e que foi um pensador que com uma originalidade insuperável colocou a inovação no centro da sua análise.

É por isso que os seus escritos são essenciais para abordar o capitalismo digital e as suas encarnações nos Estados Unidos e nos gigantes chineses, bem como a guerra tecnológica entre as duas potências. A dupla cidadania de Schumpeter nos seus dois mundos, de política pública e académica. A Europa Central e os Estados Unidos continua a ser interessante ver que as suas intuições dizem respeito ao papel do empresário, mas também às contradições entre capitalismo e democracia. Temos de considerar Schumpeter como um leitor de Marx e um admirador-adversário do socialismo, por um lado, e por outro lado como um guia do capitalismo digital e das suas contradições monopolistas. Nas fases do capitalismo americano ainda devolve o caminho da Companhia das Índias à Lei Sarbanes-Oxley ou, para actualizar o destino, do bilionário Elon Musk, enviando “tweets”, fumando um charuto e sendo sancionado pela Comissão de Títulos e Câmbios.

O singular pensador/investidor que se apanha em Schumpeter à sua maneira é Peter Thiel, o bilionário jurista, uma figura central no elogio do monopólio e do planeamento que se destaca na paisagem americana, sempre com a relação interminável com o aparelho de defesa que marca a forma americana do capitalismo político. Uma peça do capitalismo político que vive na “terra de Canaã do capitalismo”, enquanto a capacidade de análise e vigilância de dados dos gigantes digitais aprofunda as “possibilidades técnicas”, particularmente na Inteligência Artificial (IA) e na simbiose entre o homem e a máquina. Até à última tonelada em que restará algo que reconhecemos como humano. É importante ainda considerar o problema da relação entre segurança e mercados, utilizando a categoria de geo-direito para descrever em pormenor o conflito entre os Estados Unidos e a China que caracteriza a nossa era.

A casuística do geo-direito, que pode ser colocada a par das operações da lei (o prosseguimento da guerra, incluindo a guerra económica, através de meios legais), mostra o poder da tensão entre os dois litigantes. Algumas pedras de fronteira caracterizam a crise entre Washington e Pequim, quase reescrevendo a sentença de Greenspan numa constante, bem como violenta, ampliação do primado smithiano da defesa sobre a riqueza.

Os conflitos estão a ocorrer em instituições internacionais, particularmente na OMC. Dizem respeito ao crescimento exponencial da proeminência do CFIUS (Committee on Foreign Investment in the United States), o aparelho burocrático que decide sobre o investimento estrangeiro, um obstáculo à invasão do sentido global do mercado, já cimentado na altura da ascensão japonesa. No caso dos Estados Unidos, não é uma “burocracia celestial”, mas a mais poderosa burocracia de segurança nacional da história que toma o centro das atenções, como no caso Huawei.

Não se pode abordar o trabalho de Adam Smith sem considerar a ascensão do Império Britânico. Não se pode considerar a leitura de Schumpeter sem ler a transição entre o capitalismo burguês europeu e as contradições do sistema americano, e portanto o exercício do poder dos Estados Unidos, na continuidade geopolítica do pensamento de Mahan, nas reflexões sobre as “fases” do capitalismo americano, que têm repercussões no direito das sociedades e na governação empresarial.

No outro pólo está a ascensão da China, a ser considerada na relação entre o Estado-Partido e o mercado, na definição daquilo que, na retórica do PCC, ainda é “socialismo com características chinesas”, no qual uma nova burocracia celestial assimilou o capitalismo. Ao fundo, dançar as bruxas e as suas vítimas, antigos e novos Macbeths. Pois a “dança das bruxas” adapta-se e continua, como na troca relatada em “Modern Capitalism, entre Werner Sombart e Max Weber: “até ao fim da dança das bruxas que a humanidade tem vindo a encenar nos países capitalistas desde o início do século XIX? “até que a última tonelada de ferro seja fundida com a última tonelada de carvão”.

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