Burlesco-ando

Talvez porque a dança está proibida em tempos de pandemia, deu-me para ruminar na dança sexual que nos é apresentada em formato burlesco. Se não repararam, há um revivalismo do (neo-)burlesco nos últimos tempos, de onde a muito famosa Dita von Teese tem sido uma impulsionadora – a lingerie, os corpetes, as luvas até aos cotovelos, espetáculos em copos gigantes de champanhe. Tudo o que imaginam de uma exagerada apresentação da feminilidade perdida e retro encontrou expressão nos dias de hoje. Todo um movimento que rejeita a casualidade das calças de ganga.

Antigamente esses exercícios de apresentação e performance eram para umas quantas que se aventuravam – ou que eram obrigadas por diversas razões. A história mais deliciosa que encontrei foi a de uma estudante de psiquiatria que vai um estúdio de televisão fazer um estudo qualquer comportamental, mas que é confundida com uma bailarina burlesco por conta das suas formas voluptuosas. Foi assim que a Iris Chacon se tornou num símbolo sexual da América Latina. Estava no lugar certo na altura certa. As histórias podem ser de coação ou livre arbítrio, mas o papel das mulheres dos cabarés na sexualidade, feminilidade e até na moda (!) são inegáveis. Quem é que acham que criou os biquínis, as mini-saias, ou até as cuecas de fio dental? Inovações de quem precisou dar a volta à constante censura do corpo. Até porque não era qualquer uma que podia ser uma showgirl. Não é só preciso ter uma carinha laroca e um corpo de invejar. Ser uma artista exige beleza, sensualidade, postura, habilidade, muita dança (movimento da anca), personalidade e exuberância. É preciso querer mostrar-se.

Esta arte e tipo de performance trazem algumas tensões, como devem calcular. Nada no mundo é um mar de rosas maravilhoso: nem com uma tipa bonita a abanar as maminhas na vossa cara. A tensão que a literatura científica tem mais explorado é a da feminilidade e do feminismo nestes contextos. Dois conceitos aparentemente semelhantes, mas em muito diferentes. A ênfase numa apresentação exageradamente feminina nestas danças pode significar um perpetuar da visão machista da mulher que existe para agradar, para se aperaltar e para ser objectificada. Pode tornar-se numa forma de comercialização da sexualidade embrulhada num pacote de consequências que nada fazem para destruir o patriarcado – muito pelo contrário, fica ao serviço dele. Ao mesmo tempo, no contexto da pouca expressão sexual das mulheres, este agarrar a sensualidade pelos tomates sem grandes receios ou modéstias põe em causa a suposta submissão sexual que não pode ser contestada. Há liberdade de pavonear o corpo contra tudo e todos e dá-se espaço aos desejos. O batom vermelho, que é simultaneamente uma arma política e um símbolo de expressão e submissão feminina, é a maquilhagem de eleição no burlesco.

Os significados associados a estas danças são negociados e re-interpretados em conjunto, e em sociedade. Por isso é que estas discussões interessam. Como, para quem, porque é que se dança são as questões que importam. O burlesco, ou o striptease, mesmo que associado à história de liberdade sexual, é indissociável da excessiva performance da identidade “feminina” (e de todos os problemas que isso implica).

Contudo, é nesse equilíbrio entre representações de mulher devassa e submissa que existe espaço para as mulheres expressarem a sua sexualidade e feminilidade como bem entenderem. É isso que precisa de ser espalhado a quatro ventos – e dançado por aí.

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