Exército de Myanmar declara estado de emergência e assume controlo do país durante um ano

O Exército de Myanmar (antiga Birmânia) declarou hoje o estado de emergência e assumiu o controlo do país durante um ano, após deter a chefe do Governo, Aung San Suu Kyi, informou um canal televisivo controlado por militares.

Numa declaração divulgada na cadeia de televisão do exército Myawaddy TV, os militares acusaram a comissão eleitoral do país de não ter posto cobro às “enormes irregularidades” que dizem ter existido nas legislativas de Novembro, que o partido de Aung San Suu Kyi venceu por larga maioria. Os militares evocaram ainda os poderes que lhes são atribuídos pela Constituição, redigida pelo Exército, permitindo-lhes assumir o controlo do país em caso de emergência nacional.

O vice-presidente Myint Swe, nomeado para o cargo pelos militares, graças à reserva prevista na Constituição, assume agora a presidência, enquanto o chefe das Forças Armadas, Min Aung Hlaing, será responsável por fiscalizar as autoridades, indicou o canal Myawaddy News.

O anúncio segue-se à detenção, horas antes, da chefe de facto do Governo birmanês, Aung San Suu Kyi, pelas Forças armadas birmanesas, segundo indicou o porta-voz do seu partido, a Liga Nacional para a Democracia (LND). “Fomos informados que ela está detida em Naypyidaw [a capital do país], supomos que o Exército está em vias de organizar um golpe de Estado”, indicou nessa altura Myo Nyunt. A mesma fonte admitiu que outros responsáveis do partido também foram detidos.

Desde há várias semanas que os militares denunciam irregularidades nas legislativas de 8 de Novembro, que a LND venceu por larga vantagem. Estas detenções surgem num momento em que o parlamento eleito nas anteriores eleições se preparava para iniciar dentro de algumas horas a sua primeira sessão.

Partido de Aung San Suu Kyi apela a reacção

O partido de Aung San Suu Kyi apelou à população para que se oponha ao golpe de Estado e ao regresso a uma “ditadura militar”. A Liga Nacional para a Democracia publicou um comunicado na rede social Facebook, em nome de Aung San Suu Kyi, afirmando que as acções dos militares são injustificadas e violam a Constituição e a vontade popular. De acordo com a agência de notícias France-Presse (AFP), terá sido a própria Aung San Suu Kyi quem “deixou esta mensagem à população”, segundo explicou no Facebook o presidente do seu partido, Win Htein.

EUA exigem libertação

Os Estados Unidos exigiram já a libertação dos vários líderes detidos e ameaçaram reagir em caso de recusa. “Os Estados Unidos opõem-se a qualquer tentativa de alterar os resultados das recentes eleições ou de impedir a transição democrática da Birmânia e agirão contra os responsáveis se estas medidas [detenções] não forem abandonadas”, disse a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, em comunicado.

Os militares garantem ter recenseado milhões de casos de fraude, incluindo milhares de eleitores centenários ou menores. No entanto, o Exército birmanês tinha afastado no sábado os rumores de um golpe militar que circulavam nos últimos dias, num comunicado em que afirmou a necessidade de “obedecer à Constituição”, e garantindo defendê-la.

“Visto que o Tatmadaw [nome do Exército birmanês] é uma associação armada, deve obedecer à Constituição. Os nossos soldados devem obedecer e respeitar a Constituição mais do que outras leis existentes”, afirmou a força militar.

No dia seguinte às eleições legislativas, o chefe do Exército birmanês, Min Aung Hlaing, afirmou, numa intervenção perante as Forças Armadas, que se deveria abolir a Constituição se a Carta Magna não for cumprida, o que foi interpretado como uma ameaça ao país, que esteve submetido a uma ditadura militar entre 1962 e 2011.

A Comissão Eleitoral de Myanmar negou que tenha existido qualquer fraude eleitoral nas eleições de novembro, ganhas pela LND, liderada por Aung San Suu Kyi, que obteve 83% dos 476 assentos parlamentares.

A delegação da União Europeia (UE) e várias embaixadas, incluindo a britânica, norte-americana, australiana e de vários países europeus, avisaram que reprovam “qualquer tentativa” para alterar os resultados eleitorais ou “impedir” a transição democrática. As supostas irregularidades foram denunciadas em primeiro lugar pelo Partido da Solidariedade e de Desenvolvimento da União (USPD, na sigla em inglês), a antiga força política no poder, criada pela então Junta Militar antes de esta se dissolver.

O USDP foi o grande derrotado das eleições, ao obter apenas 33 lugares no parlamento, tendo recusado aceitar os resultados, chegando mesmo a pedir a realização de nova votação, desta vez organizada pelo Exército. Os militares, responsáveis pela redacção da actual Constituição, detêm um grande poder no país, tendo, à partida, garantidos 25% dos lugares no parlamento, bem como os influentes ministérios do Interior, das Fronteiras e da Defesa.

Em Novembro de 2020, o Centro Carter — organização criada pelo antigo Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter, que enviou observadores às eleições –, emitiu um comunicado em que considerou as eleições livres e justas. A vitória eleitoral de Suu Kyi, Prémio Nobel da Paz 1991, demonstrou a sua grande popularidade em Myanmar, apesar da má reputação internacional pelas políticas contra a minoria rohingya, a quem é negada a cidadania e o voto, entre outros direitos.

Estas foram as segundas eleições legislativas desde 2011, o ano da dissolução da Junta Militar que se manteve no poder durante meio século no país.

ONU condena detenção

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, condenou “firmemente” a detenção pelo Exército da chefe de facto do Governo de Myanmar, Aung San Suu Kyi, considerando as acções dos militares um “rude golpe” contra as reformas democráticas.

Em comunicado, o responsável da ONU afirmou que a detenção de Aung San Suu Kyi com outros líderes políticos, incluindo o Presidente, Win Myint, e “a declaração da transferência de todos os poderes legislativos, executivos e judiciais para os militares”, constituem “um rude golpe contra as reformas democráticas em Myanmar”.

António Guterres recordou que “as eleições gerais de 8 de Novembro de 2020 conferem um mandato forte à Liga Nacional para a Democracia (LND), refletindo a vontade clara” da população “em continuar na via da democracia, adquirida duramente”. Por essa razão, “todos os líderes devem agir no interesse das reformas democráticas de Myanmar”, defendeu, apelando ao “diálogo” e “ao respeito integral dos direitos humanos e liberdades fundamentais”.

O Conselho de Segurança da ONU tinha já prevista uma reunião sobre a situação em Myanmar, agendada para quinta-feira, com a emissária das Nações Unidas Christine Schraner Burgener, mas a sessão pode ser vir a ser antecipada, devido aos desenvolvimentos no país, indicaram fontes diplomáticas à agência de notícias France-Presse (AFP).

China pede resolução de diferenças

A China apelou aos militares e políticos do Myanmar para que “resolvam as suas diferenças, de acordo com a Constituição e as leis”, após um golpe de Estado perpetrado pelo exército do país. “A China é um país vizinho amigo do Myanmar”, reagiu em conferência de imprensa o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês Wang Wenbin. “Esperamos que todas as partes interessadas resolvam as suas diferenças, de acordo com a Constituição e as leis, a fim de manter a estabilidade política e social”, disse Wang.

O porta-voz disse que a China “está a tentar entender melhor a situação actual”, após o golpe. O Myanmar é um país chave no projeto de desenvolvimento comercial “uma faixa, uma rota”, lançado pela China, que investiu milhares de milhões de dólares em minas, infra-estruturas e gasodutos no país do Sudeste asiático.

O Presidente chinês, Xi Jinping, visitou a capital do Myanmar, Naypyidaw, em Janeiro de 2020, onde assinou cerca de trinta acordos, a maioria para o desenvolvimento de infra-estruturas. O Partido Comunista Chinês tem uma história turbulenta com os militares do Myanmar, devido a campanhas contra grupos étnicos minoritários chineses ou tráfico de drogas ao longo da vasta e montanhosa fronteira entre os dois países.

Grupos de direitos humanos exigem libertação de Aung San Suu Kyi

Grupos de defesa de direitos humanos exigiram a libertação imediata da até agora líder de Myanmar (antiga Birmânia), Aung San Suu Kyi, e outros membros do gabinete detidos pelo exército que assumiu poder político após golpe de Estado.

“O Exército de Myanmar deve libertar imediata e incondicionalmente Aung San Suu Kyi, funcionários do Governo e todos os detidos ilegalmente. As ações do Exército mostram total desdém pelas eleições democráticas”, afirmou Brad Adams, director da Human Rights Watch (HRW) Ásia.

A vice-directora regional da Amnistia Internacional, Ming yu Hah, descreveu as detenções como “extremamente alarmantes” e exigiu que fossem libertados “imediatamente” se não pudessem ser acusados de qualquer crime reconhecido pelo direito internacional. “É um momento sinistro para o povo da Birmânia e ameaça agravar a repressão militar e a impunidade”, frisou, usando a antiga designação de Myanmar.

Por sua vez, Matthew Smith, director da organização Fortify Rights, disse que o Exército deve parar as detenções e dar garantias da segurança e do bem-estar dos detidos. O golpe militar em Myanmar gerou protestos na vizinha Tailândia, em cuja capital, Banguecoque, dezenas de activistas se manifestaram em frente à embaixada birmanesa para exigir a libertação dos detidos.

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