Justiça | Casal Guerra absolvido em Timor-Leste, mas caso conexo prossegue em Macau 

O casal de portugueses Tiago e Fong Fong Guerra, residentes de Macau, foram condenados pelo crime de peculato em 2017, mas na sexta-feira foi tornado público o acórdão do Tribunal de Recurso de Timor-Leste que os absolve. No entanto, ainda decorre um processo conexo em Macau, uma vez que tanto o casal como os pais de Fong Fong Guerra estão acusados do crime de branqueamento de capitais

Com agência Lusa 

 

O Tribunal de Recurso timorense absolveu o casal de portugueses Tiago e Fong Fong Guerra, condenado em 2017 por peculato a oito anos de prisão e a uma indemnização ao Estado, ordenando o descongelamento das suas contas.

O acórdão, aprovado por unanimidade por um colectivo de três juízes, e que foi na sexta-feira comunicado às partes, determina a absolvição do crime de peculato, pelo qual o Tribunal de Díli tinha aplicado uma pena de oito anos de prisão efectiva e o pagamento de uma indemnização de 859 mil dólares. Segundo fontes judiciais contactadas pela Lusa, o tribunal determina ainda o descongelamento das contas bancárias do casal e o levantamento de todas as medidas de coacção que estavam a ser aplicadas.

Ao HM, o ex-advogado de defesa do casal neste processo, Álvaro Rodrigues, disse tratar-se de uma “excelente notícia” e confirmou o fim das medidas de coacção. “Estávamos à espera [desta decisão], porque a acusação e a condenação que foi feita em Timor-Leste era injusta e não tinha qualquer fundamento.”

Álvaro Rodrigues adiantou também que o casal Guerra terá acesso ao acórdão esta semana, tendo de aguardar ainda um prazo de 15 dias para que o mesmo transite em julgado, o que vai efectivar o fim das medidas de coacção até agora decretadas.

O advogado adiantou também que Tiago e Fong Fong Guerra “estão extremamente felizes” com o desfecho deste processo, que teve algum impacto negativo junto da comunidade portuguesa de Timor-Leste. “Mas isso depois foi diluído e hoje acho que já se esqueceu e com esta decisão de um tribunal de recurso, superior, a declarar que eles são completamente inocentes, acho que a comunidade facilmente esquecerá esse impacto.”

Entretanto, corre em Macau um outro processo conexo, onde o casal e os pais de Fong Fong Guerra estão acusados de um crime de branqueamento de capitais, numa acção que, segundo a defesa, teve por base o processo de Timor-Leste e as cartas rogatórias na sequência de pedidos de informação feitos a Macau.

Álvaro Rodrigues, que defende o casal neste processo em Macau, não quis tecer comentários adicionais. “Esta decisão é importante não só no processo que decorreu em Timor mas também por causa de um outro processo conexo que está a decorrer em Macau. Não vou fazer comentários porque o processo está em curso. E também devido a normas deontológicas estou impedido de tecer comentários.”

O que diz o acórdão

O acórdão conclui um processo que durou dois anos e meio. Nele os juízes dão deferimento ao recurso da defesa à sentença de 24 de Agosto de 2017, onde se argumentava que a decisão da primeira instância padecia de “nulidades insanáveis” mais comuns em “regimes não democráticos”, baseando-se em provas manipuladas e até proibidas.

O casal foi preso pela polícia timorense em Díli a 18 de Outubro de 2014 e esteve desde então impedido de sair de Timor-Leste, com Tiago Guerra obrigado a apresentar-se semanalmente na Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL). Enquanto aguardava a decisão sobre o recurso à sentença do Tribunal Distrital de Díli, mantendo sempre a sua inocência e acusando o Tribunal de primeira instância e o Ministério Público de várias irregularidades, o casal fugiu para a Austrália, onde chegou, de barco, em 9 de Novembro de 2017, tendo depois chegado a Lisboa em 25 de Novembro desse mesmo ano.

O casal foi representado pelos escritórios Da Silva Teixeira e Associados e Abreu e C&C Advogados que, depois da fuga do casal renunciaram ao mandato. Contactados pela Lusa, os dois escritórios de advogados confirmaram que não puderam receber cópia do acórdão por terem renunciado ao mandato.

No recurso, a defesa apresentou 13 pontos de contestação à sentença, incluindo a “intromissão não autorizada em correspondência”. “Ao fim de 15 sessões de julgamento e depois de ter sido proferido o Acórdão ora colocado em crise, constata a defesa, sem qualquer margem para dúvida, que este processo padece de várias nulidades insanáveis, algumas das quais apenas acontecem em regimes não democráticos, o que não é o caso de Timor-Leste”, refere o recurso da defesa.

O texto, apresentado junto do Tribunal de Recurso, considera ter havido “manipulação de prova, utilização de prova proibida e valoração da mesma”, defende ter havido inconstitucionalidade, omissão de realização de diligências necessárias para a descoberta da verdade e “insuficiência de matéria de facto provada para a decisão”.

Os dois portugueses foram julgados pelos crimes de peculato, branqueamento de capitais e falsificação documental sendo central ao caso uma transferência de 859 mil dólares, feita em 2011 a pedido do consultor norte-americano, Bobby Boye.

Boye, um consultor pago pelo governo norueguês e posteriormente pelo governo timorense, chegou a ser co-arguido neste processo foi, entretanto, condenado nos Estados Unidos onde está a cumprir pena. A fuga do casal causou tensão diplomática entre Portugal e Timor-Leste, com o assunto a suscitar críticas de dirigentes políticos e da sociedade civil, com artigos a exigir até investigações à embaixada de Portugal em Díli.

Na sequência da fuga do casal, o Ministério Público timorense acusou um outro português e dois timorenses de vários crimes, incluindo branqueamento de capitais, por alegadamente terem apoiado na fuga do casal. Esse processo está ainda a decorrer no Tribunal Distrital de Díli.

Um casal satisfeito

Tiago Guerra disse à Lusa estar “muito satisfeito” porque “foi feita justiça”. “Estou muito satisfeito que depois de tantos anos finalmente foi feita justiça”, disse Tiago Guerra, contactado telefonicamente em Lisboa e informado pela Lusa da decisão do colectivo de juízes do Tribunal de Recurso.

“Ainda sem ler o acórdão fico grato que a justiça esteja a ser reposta. Sempre mantivemos a nossa inocência e isso é muito positivo”, considerou. Agradecendo o apoio da equipa de defesa, familiares e amigos, Tiago Guerra disse que a notícia da absolvição termina um longo e difícil processo para toda a família.

Actualmente a viver em Portugal, Tiago Guerra disse que a decisão do Tribunal de Recurso “muda tudo”. “Têm sido tempos difíceis. Temos estado a viver à custa de família. Retomamos o trabalho devagar e temos estado a tentar refazer a nossa vida, voltar a ter uma família normal”, afirmou.

Tiago Guerra acrescentou que a decisão de Díli deverá ter um impacto num outro processo a decorrer em Macau, onde ele próprio, Fong Fong Guerra e os pais da mulher são arguidos.

“Se realmente esse crime de que estamos acusados não existe, e era o subjacente do processo de Macau, esse ficaria sem mérito. Imagino que Timor-Leste comunique agora a Macau a decisão”, referiu.

Ana Gomes satisfeita com decisão

A candidata à Presidência da República em Portugal, Ana Gomes, disse estar satisfeita com a absolvição do casal português Tiago e Fong Fong Guerra. “Estava a haver uma perversão da justiça, uma instrumentalização da justiça, tornando este português numa vítima”, afirmou à Lusa Ana Gomes, que se empenhou pessoalmente no caso. “Fico muito feliz por as próprias autoridades judiciais timorenses terem concluído que ele estava ilibado”, disse Ana Gomes, salientando que foi contactada por Tiago Guerra que lhe deu conta da decisão judicial.

A absolvição, por um tribunal superior, mostra a “capacidade das autoridades judiciais timorenses” e a sua “coragem em assumir o erro”.

“Li o processo na altura” e “percebi que era um caso que se arriscava a criar uma grande fricção entre Portugal e Timor”, recordou a antiga eurodeputada, que visitou Tiago Guerra na prisão e “estava ao corrente que todas as diligências que as autoridades portuguesas tinham feito”.

Quando o viu pela primeira vez na prisão, em 2015, Ana Gomes disse que se apercebeu do risco de saúde e tentou sensibilizar as autoridades timorenses para o libertarem. “A verdade é que um mês depois [dessa visita], as autoridades timorenses decidiram deixá-lo em residência fixa até ao final do julgamento”, a cuja sentença de primeira instância também assistiu.

No processo, Ana Gomes detectou “vários problemas” que mostravam a fragilidade do caso contra o casal, que fugiu para Portugal. “Entendi quando ele [Tiago Guerra] não teve outra alternativa senão usar os meios que usou para fugir de Timor-Leste”, disse Ana Gomes, comentando a fuga do casal, via Austrália.

Após o anúncio da absolvição de Tiago Guerra, Ana Gomes publicou no Twitter: “Muito feliz com a total ilibação do português Tiago Guerra pelo Tribunal Supremo de #TimorLeste”. A antiga eurodeputada comentou também o seu papel na saída da prisão, mostrando-se “muito orgulhosa por ter ajudado à sua libertação da cadeia de Becora”, publicando uma foto da visita que fez em 2015, com o então embaixador português Manuel de Jesus. “Vale a pena lutar pela #Justiça!”, escreveu ainda Ana Gomes.

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