A liberdade problemática

Lembro-me sempre de Sebald, quando se fala da necessidade de esquecer a história de um modo intencional e compulsivo. Foi o que a Alemanha fez após a segunda grande guerra mundial. No fundo, é o que todas as narrativas fazem ao deixarem de lado o que não interessa a cada presente que as lê. Os nacionalismos e os colonialismos de todo o tipo – e de todos os tempos – sempre trabalharam desse modo. Se o esquecimento compulsivo pode atrair a ordem e uma coerência artificial dos factos, não deixa de ser verdade que o oposto – o esquecimento não compulsivo – atrai muitas vezes o acaso. A razão é simples: se o esquecimento não compulsivo está relacionado com uma quebra de continuidade e de controlo, o acaso, por seu lado, dá-se bem com saltos improváveis a que a realidade por vezes se reduz assim que a bússola e a mão de comando se dissipam.

O par ‘esquecimento não compulsivo’ vs. ‘acaso’ é um tema maior do nosso tempo e pode ser verificado todos os dias na actualidade política, na expressão da guerra (não necessariamente clássica), nos media, nas crises financeiras, na prolixidade dos comentadores, na redundância das campanhas eleitorais e até na estética publicitária.

As obras de Paul Auster reflectem estas realidades de um modo particularmente incisivo. Em quase todos os seus livros se prenuncia uma catástrofe. É assim no desfecho suicidário de Música do Acaso (1990), quando Nashe leva ao extremo a intriga em que se deixa envolver; e é assim quando o mestre Yehudi de Mr. Vertigo (1994), o caderno vermelho de Quinn (da Trilogia de Nova Iorque) e o livrinho preto dos telefones (achado por Maria Turner, em Leviathan – 1992) desencadeiam, cada um a seu modo, sucessivos movimentos de dominó nos destinos das personagens. O desconcerto assenta sempre em lapsos de memória, ou melhor, em descontinuidades entre o presente imediato e aquilo que o antecede, e apresenta-se ao leitor, por vezes explicitamente, sob a forma do acaso.

Para além disso, Paul Auster sempre explorou as semelhanças entre os acontecimentos mais diferenciados entre si. Este ponto de partida, baseado na equivalência do improvável, parece por vezes sobrepor-se a qualquer tipo de lógica. É o caso, no romance Música do Acaso, dos paralelismos entre as infâncias de Pozzi e de Nashe e entre os destinos de Flower e de Willie. É também o caso do paralelismo formal que se desenha entre os desaparecimentos de Sachs e de Dimaggio, em Leviathan, e, por outro lado, do tipo de simulação praticado por Quinn/Auster na Trilogia de Nova Iorque e por Maria/Lilian em Leviathan. É ainda o caso das semelhanças que são propostas entre o ponto de partida da própria vida de Nashe (em Música do Acaso) e o que acontece na vida de Walter, no final da segunda parte de Mr. Vertigo.

Vale a pena seguir estas pistas exemplares. As semelhanças – que atravessam a superfície lisa ou enrugada dos acontecimentos – narradas por Paul Auster não andam muito longe da interpretação que os media e os governos contemporâneos levam a cabo em situações limite. A tentação de relacionar o ‘não relacionável’ faz parte de um modo de entender o mundo, no qual o desejo adoraria transformar-se em profecia. De alguma maneira, encontramos materializado em Paul Auster aquilo que Gianni Vattimo designou por “liberdade problemática”. Quer isto dizer que a liberdade, tal como é tratada pelo escritor, se transforma quase sempre em algo insuportável, parte da curva de um labirinto maior onde a interpretação acaba por se esgotar, enclausurada que se sente por obsessões tão profundas que não cabem na cartografia das explicações.

A questão do terrorismo coloca-se igualmente neste tipo de parábolas actuais que disputam toda uma possível história do sentido. O mundo metaforizado por Paul Auster é, afinal, um mundo muito real, dominado por disjunções inexplicáveis e por ameaças maiores que, no entanto, nunca se tornam inteligíveis. O que acontece supera quase sempre a sua significação. É um facto que sempre existiu uma relação particularmente difícil entre a ética (o ‘dever ser’ interior) e as práticas do terror ou do mal. Susan Neiman afirmou que, desde o Iluminismo até ao presente, sempre existiram dois pontos de vista antagónicos a este respeito. O primeiro, que vai de Rousseau a Hannah Arendt, insiste que a moral nos obriga a tornar o mal inteligível. O outro, que vai de Voltaire a Jean Améry, insiste que a moralidade nos obriga a não o fazer. Esta ambiguidade traduz um campo fértil para a entrada em cena da personagem mais espessa do nosso espectáculo actual: a crise.

É difícil ter visto os arruaceiros que invadiram o Capitólio em Washington DC (e a complacência da polícia que os recebeu) e esquecer as incongruências anunciadas, anos antes, pelo mundo literário de Paul Auster. O incompreensível atrai sempre o sabor de uma impossibilidade que, de repente, já está a acontecer diante dos nossos olhos. É no movimento dessa atracção que reside justamente o que se entende por crise. Só que na realidade o acaso parece sempre premeditado como se fizesse parte de uma conjura maior, enquanto na ficção literária ele consegue ter um brilho próprio que se assemelha a uma promessa ou a uma velada predição.

Em ambos os casos é a “liberdade problemática” que age com as suas obsessões perigosas e irracionais, de que Trump será por estes dias a imagem mais evidente, mas também a figura que eu irei para sempre tratar ao nível do esquecimento compulsivo. Outra coisa não merece esse diabo.

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