O homem que escrevia sobre os outros

Numa entrevista nos anos 80, o escritor franco-polaco, Charles Ravinski dizia que escrevia muito sobre os outros para se proteger de escrever demasiado obre si mesmo. Outra das suas tácticas para se proteger desse pecado mortal, como lhe chamava Ravinski, era a tradução. Isso não o impediu de, aos 87 anos, já no início deste século, escrever a sua obra magna «Os Caminhos do Senhor». Neste livro, de mais de 700 páginas, a que o filósofo francês Louis Garnier chamou «a obra dos outros», Ravinski escreve só sobre os seus amigos e vizinhos. Não naquele sentido telenovelístico de espreitar para a casa do outro e descrever o que lá se passa – eventualmente trocando os nomes e por vezes as profissões – mas intercalando frases deles mesmos com pensamentos que poderiam pertencer-lhes, partindo das suas frases. Aliás, escreve à página 23: «O que pensamos nunca é nosso.» Mas veja-se como começa o livro, de modo a entendermos a operacionalidade: «Gustave chegou ao café sentou-se à minha frente e disse-me que ia morrer. Um cancro no pâncreas, detectado apenas a tempo de ordenar o que ia ficar para os outros. Perguntou-me: “Charles, queres ficar com alguma coisa lá de casa?” Quando nos separámos fiquei a pensar em quando aquela dor seria também a minha. Teria a coragem dele? Olhar para as coisas da casa, tentar entender o que deveria ser dado indiferentemente, o que deveria ser destruído e aquilo que devia ficar para os amigos. Tenho tido muita sorte com o meu corpo, com a minha vida. A situação de Gustave fez com que me lembrasse de um dos meus primeiros amigos, Jacques, que morreu aos 19 anos, num acidente de carro. E depois lembrar-me também da minha primeira mulher, Catherine, que morreu de cancro da mama aos 37 anos. Ainda oiço e palpo o sofrimento dela. E lembro-me, muito claramente, da minha incompreensão. Tenho tido muita sorte com este corpo.»

Estas reflexões e discursos de Gustave – porque há mais conversas no café –, alongam-se por mais de trinta páginas. Em momento algum, nos encontros entre Charles e os seus amigos ou vizinhos aparece uma palavra que não seja derivada da situação dos outros frente a ele ou das suas próprias palavras. Nem sequer um «bom dia» ou «como está?». As recordações da sua vida são apostas ao que os outros falam, ao que lhes acontece, como se as suas memórias fossem um prolongamento dos outros e não dele. Porque, escreve Ravinski, a propósito do «Vidraças», um pedinte junto à casa de Charles, que se sentava sempre encostado aos vidros das montras a ler, com uma pequena caixa de plástico em frente, para as esmolas: «Nenhum de nós é único. Somos todos paredes contíguas de outros. De um de nós para o outro, ouve-se tudo o que dói. A vida humana é tão incompreensível que deveríamos ter outra palavra para ela. A vida não é isto que somos. É uma parte dela, não é significativa, nem sequer a melhor ou a mais importante; nem sequer a que mais sofre. Somos a parte absurda da vida. Escutamos tudo, não compreendemos nada.»

Ravinski expressa o absurdo de viver para ver morrer quem se ama. Ele mesmo dizia ser uma maldição continuar a viver para além dos outros. Pensa, enquanto está sentado no café com o amigo: «Quando Gustave morrer, ficarei só no mundo. Nem mais um amigo dos tempos em que havia futuro e não se dava por viver. Mas Gustave interrompe-me os pensamentos e diz: «Lembras-te da Sara? A Sara Bronstein, uma poeta muito bonita, que se apaixonou perdidamente pelo Camus e se suicidou aos trinta e poucos anos… Nas últimas semanas não me sai da cabeça.

Lembro-me continuamente de uma coisa que ela me disse: achas que alguém se vai lembrar de mim se eu morrer amanhã? Nunca lhe respondi. Nunca lhe disse nada. Ela tinha bebido bastante e julguei aquilo um disparate. Enchi-lhe o copo com um sorriso, foi tudo. Dias depois matava-se. E agora, mais de trinta anos depois, aqui estou à beira da morte a lembrar-me dela, mais do que das minhas amantes e dos meus amigos.” Fiquei em silêncio a olhar para ele e não tive coragem de lhe dizer que também eu tinha sido amante de Sara, a bela poeta suicida.»

O livro está repleto de pequenas histórias a envolverem os seus amigos, alguns apenas conhecidos, intelectuais e artistas de Paris. Assim, «Os Caminhos do Senhor» torna-se um longo desfilar de mortes, de sofrimento à volta das mortes, de muitas pessoas que fizeram parte da vida de Ravinski. O livro aparece-nos como uma espécie de longa ode à memória. Porque, mais do que exaltação da vida ou da morte ou do amor ou da amizade, é a memória que surge com mais iluminação. Como diz Gustave: «Poder chegar à nossa idade lembrando tanto e ainda continuar a descobrir novas sentidos nessas memórias não deixa de ser belo, não achas Charles?» Ou já a mais de meio do livro, uma fala do seu barbeiro de décadas, pouco mais novo que Charles: «“Doutor, isto de lembrar o antigamente, tem que se lhe diga! Veja lá que ainda ontem me lembrei de quando era criança, ainda em Rheu, na região de Rennes, ter partido a cabeça ao meu irmão com uma pedrada, por estarmos a discutir por causa de uma bicicleta… E a vida toda, ou quase toda, está bem de ver, tinha a ideia de que quem lhe partiu a cabeça tinha sido o Frederique, um amigo nosso que só nos fazia mal. Uma espécie de aviso pra vida… E afinal o amigo mau fui eu. Para você ver. Como o meu irmão já morreu e da outra peste nunca mais ouvi falar, vou ficar sem saber o que realmente se passou.”

Fiquei a pensar que provavelmente o irmão também não iria lembrar os acontecimentos tal como se passaram, porque talvez ao longo da vida eles tenham sido tão construídos como na realidade aconteceram. E hoje o que importa é a luz que ilumina esse dia, há mais de setenta anos. Esse dia continua iluminado, como se fosse um actor em palco, movimentando-se e dizendo as suas falas.»

Os caminhos do senhor, para que o título do livro remete, tem a ver com a estreita e estranha relação entre o destino e a memória. E por destino, em Ravinski, devemos entender os caminhos que se desenrolam ao passarmos de um dia para o outro, como portas. As pessoas que são invocadas ao longo destes caminhos, quer seja o Vidraças ou o barbeiro ou a senhora da mercearia ou os amigos mais próximos, que na altura da narrativa é apenas Gustave, tornam-se criações de Ravinski através não só da reflexão, mas fundamentalmente da memória. «A memória transforma tudo. A grande diferença, entre a memória de um computador e a nossa, é que o computador é um armazém e a nossa é um negociante. A memória do computador guarda tudo como foi, a nossa negoceia tudo para que seja como foi.», diz Gustave, e continua: «“Um dia, lembrar-te-ás de mim, sim, porque tu ainda vais passar dos 100 anos, e dirás: aquele gajo era muito boa pessoa. Logo eu, que sempre fui do pior com os outros. Sem simpatia, sem compaixão, sem uma mão estendida. Tu sabes bem, Charles, que sempre quis que o outro se fodesse, não sabes?” Eu sabia, claro, já éramos amigos há mais anos do que nos lembrávamos. Mas, evidentemente, o Gustave não tinha só qualidades. De quando em quando, lá tinha uma fraqueza e fazia qualquer coisa boa. Ou será que já a minha memória a trair-me.» Neste momento do livro, damo-nos conta de que tudo pode ser uma grande invenção.

De que na realidade talvez tudo não passe de uma grande invenção. Um livro que, além de belo, de nos mostrar algumas personagens icónicas de Paris, no faz pensar de um modo pertinente a acção da nossa memória. Porque no fundo, o que é a memória senão invocar os outros? Tudo o que não está aqui é outro. Ravinski sabia isso muito bem e mostrou-nos melhor ainda.

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