Dezembro

Que me desculpe, se surge todos os anos assim. Nem é que seja um mês pior do que os outros. Mas avizinha-se e o golpe nunca falha mês adentro. Como um Cristo a antever o abraço de pietá. O que é isto, dezembro. Um comboio aguardado no cais de embarque, cheio de expectativas e contas. Um comboio em que me vejo embarcada e já foi. Agora há que seguir. Eu não tenho nada. Mas eu celebro porque tenho um corpo, espaço. E cobertores sempre a mais. Nunca hei-de ter frio. Muito se esconde sobre a cama por debaixo de um cobertor. Uma criança de olhos arregalados e sono espantado a pedir a mesma história de sempre, pela milionésima vez e dedinhos pequeninos a sentir e a agarrar. Um gato quando se tem pressa e entre mãos umas meias finas de seda nunca imunes àquelas unhas agudas de brincar. Um cão grande do tamanho de um sofá da sala escondido com medo do trovejar da natureza. E, um dia, tudo lembrança.
A lembrar fragmentos de canções. Nina. Depois títulos, grandes títulos, dos quais simplesmente se podia costurar um texto, como uma manta de retalhos bem unidos a fazer sentido. Tanto já dito e escrito e precisar de continuar. Repetir, talvez. Algo pessoal com respeito. Por este corpo que é único mesmo se pequenas as suas incursões às palavras que são de ida e volta.
Dezembro é mês em que não suporto ficar. Ao ponto de encerrar todo um ano e reinventar todas as cartas e desejos. É a vertigem da viagem. Acabar e recomeçar sempre. Partir. Celebrar.
Dou números às coisas. O desta, em forma de crónica, é o número cinquenta, redondo como os zeros que se aproximam na meia-noite de fim de algo. De ano. Cinquenta desta leva e seriam celebrados também cento e cinquenta crónicas no todo, mas uma foi e veio por terra e só voltou dois anos depois. Portanto não pode contar a dobrar. Assim se perfazem para a semana e haverá que voltar a celebrar. Esta escrita nunca imaginada possível. O insólito e inesperado encontro de todas estas palavras entre si. E celebrar é o acto contínuo de viver. E de encontrar.
Celebro porque já tive pais. Porque já tive cães, mesmo os que não eram meus mas era como se fossem. Um por um dia e morreu porque já vinha da rua a morrer. E gatos. E um por vinte anos e esse era meu mas também se era já não é. E já tive crianças que também não eram minhas mas era como se fossem tão amadas e minhas que eram. É o que lhes acontece. Escaparem-se-nos. E depois, deixarem-se reencontrar como um passado ou uma promessa. Celebro por tudo o que me trouxe ao dia de hoje e a amanhã. E depois logo se vê. Tenho uma vida, um corpo. Cuido, mas cuido pouco. Por isso é o mesmo de sempre com estas diferenças incontroláveis. Bebo, fumo. Doces a mais e amarguras a mais. A sedosa alienação das gorduras. E uma raposa por uma noite na cozinha um mocho por uns tempos a comer atento pedacinhos de carne crua. Ele apanhava pássaros de cantar, com armadilhas de visco de madrugada que ficavam escondidos por debaixo de panos translúcidos para não se distraírem. E, de novo, nada disto é meu mas é da minha vida. Com quem diz eu tive uma fazenda em áfrica porque o livro.
E pássaros bonitos a fazer ninho, rolas a perturbar o sono tudo no sótão e acho que acaba aqui a lista. E o que parecem metáforas mas não são. É isto a escrita. O que parece e o que é. E vice versará sempre. Mas a menos que sobre o grito, que é sempre puro.
Há que celebrar, partir. Esta viagem. Num comboio por um sul que atravessa montanhas em túneis de profundidade exasperante. O estrondo da luz depois e de novo o mergulho na escuridão por debaixo destas toneladas imensas de rocha, pesadas e inabaláveis. Em escarpas que, súbitas, deixam espreitar lá abaixo a antiguidade de passagem. É o sabor de décadas a montante, o que fere de emoção e alimenta a seta. Cravada fundo na europa. O comboio a ferir o flanco. Túneis atrás de túneis a evidenciar os acidentes da terra íngreme. A parecer a vida, nesta alternância de luz e escuridão e sempre com os focos artificiais a cumprir o inevitável. A suprir o inevitável, deveria dizer. A viagem de comboio é lenta porque a terra é grande mesmo se o comboio é rápido. Combinámos para lá das montanhas e ao fundo do último túnel. Destes. Vamos chegar enxovalhados. É estranho, até, como a vida de três dias se nos amarfanha visivelmente no rosto e nas roupas, de nada fazer senão deixarmo-nos ir ao encontro.
Mesmo que chegue mais cedo, é certo que sempre gostei destes apeadeiros imprevisíveis de solidões adormentadas arrumadas como possível no desconforto de bancos corridos de madeira. Luzes fracas amarelas e a atravessar a noite não vão os viajantes, alguns de lado nenhum, perder o próximo comboio do meio da noite. Lá fora a avançar no cais.
Aquele momento de apanhar um comboio nocturno e chegar ao lugar marcado. Mas antes, sentar. O início da viagem com todo o resto pela frente. Pela noite fora. E lá no fundo, tu.
Enrosco-me no cobertor de lã quente com a cabeça apoiada na janela para a noite e olho o outro dobrado no banco em frente. Havemos de nos deitar naquele alto descampado e frio, que não será frio porque temos estas mantas. Para contemplar estrelas e contá-las no céu sem fim. Um momento que não é para datar. Coisas sem essas coisas.
E sempre e enquanto dura, este som continuo e embalador. Mecânico. As rotações mecânicas do comboio pela noite fora. A levar em frente. E em frente, amanhã.
Não olho agora pela janela. A noite só me devolve o meu reflexo e as luzes amarelas da carruagem.

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