Nocauteado

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 24 Outubro

[dropcap]A[/dropcap]credito sem verificar no que me diz em dedicatória o seu director, José Carlos Marques: a «DiVersos» é a única revista de poesia a lançar-se aos nossos olhos, sem interrupção, há mais de 24 anos. Cada edição sabe-me a água fresca, no seu modo simples de, alheada aos modismos, recolher vozes das mais díspares geografias, em estilos diversos, tratando temas que vão da padaria aos números, e que não se ficam pela contemporaneidade. No número 29, a páginas 113, na versão brasileira de Matheus Peleteiro e Edivaldo Ferreira, mora poema de Niels Hav (Dinamarca, 1949) que ecoou nesta minha idade média: «Incapaz de achar uma resposta». Começa por, encontrando-se «sozinho na luz cintilante/ com a simples verdade», seguir com toada avaliadora. «Eu devia ter feito tudo diferente,/ isso é fácil de perceber./ Geralmente eu estava nocauteado,/ preocupado com as tarefas mais triviais,/ preso em preocupações banais sobre dinheiro/ ou me sentindo exaltado por apenas existir.» Enumera depois o seu gasto do tempo com insignificâncias, as do quotidiano. Até ao regresso à luz inicial. «Muitas vezes desconsiderei fazer coisas mais úteis/ a fim de reflectir sobre o mistério,/ na esperança de captar um pensamento/ ou a articulação adequada num devaneio.// Era comigo mesmo que estava em guerra?/ Olhar a verdade nos olhos/ é tão insuportável quanto encarar/ o sol. A verdadeira insanidade/ parece normal.»

Horta Seca, Lisboa, quarta, 4 Novembro

Soubera eu sonhar e teria construído em imagens profusas e barrocas uma casa, que ainda assim haveria de ser modesta e instável, em constante mutação, azulejo ou parede trasnfigurado ecrã, sem sombra de linhas rectas. Portanto, organismo respirador, com colunas de casca e seiva e modos têxteis de acolher os corpos. E as ideias. Certo salão, à entrada do qual se pintaria «Inferno», palavra que também se ouviria sussurrado nem sei de onde nem por quem, ficaria reservado para as intenções, essas aves-projecto que vislumbro agora imóveis em pleno ar. Às vezes espreito da porta, sem ânimo para transpôr o umbral, e temo muito tocar-lhes, o que conseguiria com facilidade, pois não sei se voariam como todos anseiam e eu desejo ou se se quebrariam logo ali em milhares de fragmentos. Por inabilidade minha, perderam a qualidade do movimento e são, vistas daqui e agora, âncoras no céu. Ponho-me a contá-las pelos dedos e logo me transfiguro em granito e peso, obstáculo irredutível onde me fecho. Não sei se os conseguirei recuperar todos, se passarão a detalhe pintado em trompe l’oeil, a fingir paisagem. Arrisco ainda quebrar o fio frágil que me liga ao outro que aguarda em ânsias.

Soubera eu sonhar e estaria, como vou estando, a testar a elasticidade de outro ramo da mesma casa-árvore colorindo folha atrás de folha, que depois planto na linha que me sustenta em dificuldade à espera que pegue. Manda a botânica que dali nascesse, em vez de enxertada, mas não funciona assina na natureza do sonho. Sem me livrar do medo, insisto em atirar bumerangues, vários e ao mesmo tempo, de assustadoras dimensões, recolhendo ao mesmo tempo e em malabarismos de muitas mãos incontáveis possibilidades de formatos múltiplos. As folhas rodopiam com os ventos passantes soltando cores, de dia como de noite.

A casa suspira, sugerindo que se alimenta tão só de pensamento e de palavra. Mas na cave, onde laboraram as mais sinistras preocupações, reina enorme confusão de silêncios sepulcrais e bússolas partidas. Sento-me e ajuízo se não deveria acordar. Estivera eu a dormir.

Santa Bárbara, Lisboa, domingo, 8 Novembro

Telegrama final, por enquanto. Ponto. Sabia do teu cansaço. Não fui a tempo de continuar aquela conversa sob as arcadas de Alvalade que durou até pintares a noite do teu habitual. Todos os teus céus eram negros, mesmo quando tinham cores. A tragédia era o cenário certo para convocar os corpos compósitos de restos, ruínas de carne e sangue, que misturavam cada plano oferecendo-lhes equilíbrio e consistência. Levaste à cena as explicações de como nos erguermos do lodo para ver ao longe. Ninguém homenageou melhor a realidade (ilustração na página). Ponto. Soube agora da tua morte, à beira dos números redondos, Cruzeiro Seixas. Convém rir da cabalística com os dentes todos. Mas tudo vai piorar. Pouco a pouco as formas deixarão de saber como acasalar. Os olhos perder-se-ão cegos no vazio. As mãos inchadas do tanto por escrever vão usar inadvertidamente os aparos para furar as nuvens e soltar apenas o sopro da tristeza. Os braços da liberdade perderão a força com que seguravam as chaves. As chaves, sempre elas irão gritar bem alto a sua eterna orfandade. Ponto. Dizem-te o último, mas desconfio que foste dos primeiros. Os que conseguem ser ao acabar levam consigo o âmbar da singularidade. Mas deixam sinais. Ponto.

Alecrim, Lisboa, quinta, 19 Novembro

Encontrando-me a correr atrás de uma das tais possibilidades com prazo de validade, passo mais tempo no meio de livros que o venceram, ao tempo. Amiúde queima-me as mãos uma qualquer preciosidade radioactiva por esta ou aquela razão: os modos de ser objecto, o fogo das gravuras, a raridade, a força de um fragmento, o pedaço de papel esquecido pelo leitor. Hoje, chegou inesperadamente à Livraria Campos Trindade por um daqueles acidentes do afecto, «A Morte na Raiz», de Bernardo Santareno, de 1954, com dedicatória. Deliciámo-nos com ligeireza no comentário ao volume de generoso formato, imaginámos razões para a interrupção na leitura, deixadas virgens tantas páginas, ou na estranha gralha que trocou em título o último pelo primeiro amigo. As datas andam desbotadas pela insanidade e só no dia seguinte o Bernardo [Trindade] reparou que naquele exacto dia o autor faria 100 anos. Que muda uma coincidência?

Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 21 Novembro

Não sei se deram por isso, que não lhe encontro tanta diferença, mas o Público rearrumou-se. Deliciosas têm sido as reacções à mudança de lugar do Bartoon, do mano Luís [Afonso], da última página para a vizinhança das páginas de opinião no miolo. O provedor foi chamado à prosa e suscitou as explicações do director: que foi ali que nasceu, que «a visão do país e do mundo» tem mais a ver com opinião do que com a ludicidade do fecho, afinal início para tantos. Estranho que não se perceba a diferença entre cartoon e tira cómica, mas arrume-se na gaveta da desatenção crónica. Sento-me com prazer a saborear a relevância que a pequena tira tem na identidade do jornal. Ainda vai havendo leitores.

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