Cidades, Escher e o demónio

[dropcap]D[/dropcap]esde criança que desenho cidades. O meu pai construía-as em cartolina e iluminava-as com luz eléctrica num sótão de Santarém que nunca conheci. O meu irmão sempre as desenhou geométricas, bastante ensimesmadas e a três dimensões muito antes de se falar em 3D. No meio desta genealogia familiar, as minhas cidades são as mais selvagens em toda a linha: traços desordenados, proporções sem cabimento, perímetros desconsabidos. No entanto, vistas como quem observa arte informalista, reconheço que há nelas um certo jogo de volumes, linhas de força apreciáveis e uma poética que rasga os planos da lógica. No fundo, não são cidades; serão vincos fundados por uma qualquer civilização invisível.

Chego assim de modo rápido à minha definição preferida: uma cidade é um vinco. Sim, um vinco cavado e escavado num território particularmente desejado onde os humanos decidiram um dia viver. Vincar é uma forma de ênfase que remete para sublinhar, acentuar ou adensar. É isso precisamente que uma cidade faz à paisagem que a rodeia: enruga-a, marca-a, dobra-a, numa palavra – perdoe-se-me a insistência – vinca-a.

Este vinco está sempre em mutação, razão pela qual o citadino sente um inevitável desfasamento entre a cidade da sua infância, a da velhice e a que o sucederá no futuro. “Esta já não é a minha cidade” ou “não chegarei nunca a ver a minha cidade tal como a imaginei” são frases que traduzem a ocupação da urbe pelo seu habitante. Este imaginário existencial de um continuado estaleiro que, ao fim e ao cabo, se confunde com a própria essência da cidade, foi levado ao extremo por Baudelaire. Toda a sua poética reflecte a perda e a perdição da Paris que o viu nascer face aos projectos de Haussmann que, como se sabe, demoliu e redesenhou toda a cidade no terceiro quartel do século XIX. O “spleen” e figuras como o “dandy” ou o “flâneur” – todas elas fruto desta impiedosa metamorfose – fazem parte de uma cidade que Baudelaire nunca, de facto, viria a conhecer.

O habitante do campo não vê projectado no seu exterior este tipo de descaminho, pois a erosão da natureza é muito mais lenta. O “spleen” campestre é cíclico e sazonal, por isso mesmo previsível. De algum modo, o despovoamento sublima a violência da cidade mas não a cura. É-lhe indiferente.

Por outro lado, dentro da cidade, aquilo que é incurável torna-se amiúde em matéria de fascínio. Logo no início do ‘Livro do Desassossego’, Pessoa fala-nos do restaurante localizado numa sobreloja que frequentou durante um certo período da sua vida. Passei por lá há algum tempo e constatei que o edifício fica estrategicamente virado para um dos cruzamentos da baixa. Todo o encadeamento geométrico daquela parcela de Lisboa parece avistar-se das vidraças da sobreloja. E vi-me intuitivamente a concluir que todos os mais de cem heterónimos de Pessoa serão afinal esquinas da baixa de Lisboa, imaginadas como um profuso labirinto pintado ao jeito de Maurits Escher. A visão plural do poeta está de facto ali vincada, acentuada, marcada. Eis como a cidade pode ser uma redoma capaz de encerrar – e ampliar – os limites do humano e das suas visões. O ócio dos personagens de Eça também só tem sentido dentro desta mesma área da cidade. Quando o horizonte de Eça se centra em Leiria, no norte ou no Alentejo, este ‘fastio de dandy acaciano’ esvai-se de imediato. Só a cidade, na verdade, o vinca e lhe concede um milagre que não é, de modo nenhum, apenas literário.

No reverso, a cidade – na sua longa história – também se atreve a excluir. Se lermos a parte final da ‘República’ de Platão, compreendemos que as excitações dos bardos e poetas são um perigo para a cidade perfeita. A um território reduzido, compacto e tão habitado deverá, pois, corresponder tão-só elevação e racionalidade. Se lermos a biografia de Aristóteles, ficamos a saber que, logo após a morte de Alexandre o Magno, teve que fugir de Atenas para a ilha de Eubeia – onde viveria só mais um ano de vida – não fosse perseguido pela caça às bruxas aos macedónios. Se lermos a ‘Cidade de Deus’ de Santo Agostinho e, embora saibamos que se trata de uma poderosa metáfora, não deixa esta obra de ser a apologia de um mundo que desaloja e abjura um outro. Uma cidade vinca e existe para vincar em todo o sentido do verbo, sejamos claros. Todas as muralhas construídas – em pedra ou não – se viraram sempre contra um qualquer demónio.

Ser cidade é, pois, uma forma de organismo sobrevivente que se fecha e que, ao mesmo tempo, deseja a sua própria mutação e depuração. Ora é centrípeta, ora é centrífuga. Ora se refugia no umbigo e inspira, ora escapa de si através de linhas de fuga e expira. Cesário disse-o através de metáforas chãs, mas muito lúcidas: “O tecto fundo de oxigénio, d´ar/ Estende-se ao comprido, ao meio das trepadeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,/ Enleva-me a quimera azul de transmigrar”. Porventura é na arte informalista e também nas abstrações líricas de um Kandinsky ou de um Pierre Soulages – ou, ao invés, nos geometrismos patológicos como o do já citado Escher – que a poética da cidade melhor se entenderá. Onde haja uma folha de paisagem vincada com pessoas reunidas a pensar o vento, então haverá cidade. Continuarei, por isso mesmo, a reinventá-las. Até porque é o tipo de poesia que mais me fascina.

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