A fábula do humano e do tigre (II)

[dropcap]O[/dropcap] problema aqui são dois: a possibilidade ou impossibilidade de verdade numa biografia, a despeito de se amar ou odiar o biografado, e erigir uma vida à volta do dinheiro. A primeira faceta do problema torna-se agudo porque se vai tornando claro ao longo do livro que podemos trocar biógrafo por escritor, biografado por personagem e verdade por conhecimento. Assim, a pergunta pode ser reformulada no seguinte modo: o escritor pode produzir conhecimento através da criação de personagens? Qual o sentido de escrever um livro de ficção? Ecoa como um baixo continuo ao longo do livro esta resposta: aprender. O acto de escrever ganha a sua legitimidade se aquele que o escreve aprender. E aprender não é aprender factos como se aprende na preparação para escrever uma biografia, mas aprender sobre si mesmo e sobre o mundo; escrever como quem inventa, não a sobrevivência, mas a sua vida. Lê-se à página 19 que «tudo se inventa para sobreviver», e escutamos como contraponto que tudo deveríamos inventar para viver, para sermos nós mesmos a nossa vida. Leia-se ainda à página 30: «Mas não saio desta história como entrei.» Esta fala é, evidentemente, a da escritora Mónia Camacho. Ou, pelo menos, é também a dela. A de quem sabe ou suspeita que escrever é, antes de mais, um exercício de caminhar na direcção de si e do mundo. A escritora enquanto escreve é a Princesa. E aquele que aprende enquanto escreve pode legitimamente esperar que outros possam rever-se nessa aprendizagem. É esta a legitimidade da escrita e que se interliga com o sentido da conversão, porque aprender é uma espécie de conversão. Nessa mesma página 19 ficamos a saber que o Biógrafo está na posição em que a Princesa de Marrocos estava antes de entregar-se à conversão, isto é, a dar-se conta de que a sua vida lhe estava a escapar. Leia-se: «A vida estava a escapar por onde podia. E ele estava a deixar, por não saber o que fazer com ela.» O que aqui está em causa é ver como as nossas vidas estão sempre soterradas de tudo o que não somos e de «tudo o que se inventa para sobreviver» (19), como escrever uma biografia por dinheiro e deixar de fazer o que deveríamos fazer. Como escreve Aristóteles na Ética a Nicómaco, e cito de memória, a vida de um comerciante é uma violenta forma de vida. Violenta, porque acima da sua vida está o ganhar dinheiro, ele troca o tempo que é pelo dinheiro que tem de ganhar, pelas trocas comerciais que tem de fazer. Através da personagem de o Biógrafo, fica claro, em Um Tigre À Porta Da Sé, que um escritor pode ser um comerciante.

Não apenas porque sempre o foi, no sentido em que sempre escreveu livros com o intuito de vender, mas no sentido em que em algum momento da vida isso pode passar a acontecer, de repente. Ou seja, a despeito de se ser escritor, no sentido de se estar preocupado com aprender enquanto se escreve, a qualquer momento podemos inverter esse sentido. Ninguém está a salvo de deixar de ser quem é, de desistir de si, ou de nunca vir a ser quem é. A Princesa, que em algum momento desistiu de si, passando a ser quem não é, de repente dá-se conta disso, o que a leva até Portugal. O Biógrafo está no caminho inverso, a deixar de ser quem é. E quase no final do livro, o Biógrafo dá-se conta dessa diferença, deste modo: «A resistência daquela mulher enxovalhava-o. Mostrava-lhe que a coragem dele era rasteira e sem cor. Plana.» (33)

Por conseguinte, esta pergunta retórica à página 23, «Quem somos quando não somos nós?», torna-se uma espécie de centro gravítico do texto. Trata-se de uma situação semelhante à de Alice, em «As Aventuras de Alice no País das Maravilhas», de Lewis Carroll, quando ela diz para si mesmo: «“Meu Deus! Meu Deus!

Como hoje está tudo tão estranho! E ontem tudo se passou como de costume! Gostava de saber se fui eu que mudei durante a noite? Deixa-me cá pensar: quando me levantei esta manhã seria eu a mesma pessoa?

Parece que me lembro de me sentir um bocadinho diferente. Mas, se não sou a mesma pessoa, a questão então é saber quem sou? Ah! Esse é o grande mistério!”» Pois o livro de Camacho, a fábula, é acerca desta situação humana. E esta situação humana não precisa de fazer-se sentir no seu modo mais radical, isto é, o da conversão de nos tornarmos outro. O trágico é que mesmo aquele que não se converte a si mesmo, que continua afastado da sua própria vida, do que poderia ser a sua vida, também deixa de ser esse que não é a sua vida, embora vá vivendo. Escreve Camacho: «Deverá ter havido sempre uma diferença entre a pessoa que somos em casa, quando estamos com pantufas de leopardo, e a pessoa que somos na rua.» (23) Ou seja, qualquer que seja a apresentação da situação humana, na conversão ou no esquecimento de si, temos sempre situações que nos lembram, que nos mostram que somos outro que não nós. Quem somos? Assim a pergunta também se inverte, não é apenas «quem somos quando não somos nós?», mas «quem somos quando somos nós?». Porque a falha contínua que se opera de nós para nós não apenas se faz sentir, mas tem de ser indicador de algo. Indicador do desconhecido que somos de nós mesmos e da desatenção que se opera de nós para nós. Não somos mais distraídos de nós do que somos dos outros. A distracção é o nosso ponto de vista usual. É assim que estamos na vida, distraídos, esquecidos. Um Tigre À Porta Da Sé é uma fábula sobre a nossa condição humana quando nos damos conta de tudo isto, da possibilidade de desistirmos de nós e continuarmos a viver ou de nunca chegarmos a ser nós mesmos, no sentido de darmo-nos conta da falha que nos habita. O dar-se conta, evidentemente, é o caminho da conversão, como escrever um livro que nos mostre isto. Um tigre à porta da Sé é o humano a dar-se conta de si e querer transformar-se. Ou como escreve Mónia Camacho a meio do livro acerca da Princesa: «Ela era o tigre à porta da Sé».

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