Uma Bungavília a asfixiar o mundo

[dropcap]N[/dropcap]o jornal Hoje Macau, de 10 de Setembro de 2020, o autor de Cálice, Luís Carmelo, escreve a respeito deste livro (e também do segundo volume do dístico, que terá o nome de Ciclone) e diz que a sua escrita implicou uma «poética da biografia». Na verdade, e é isto que está em causa no livro, toda a biografia só pode revelar um rosto através da poesia. Tudo o resto, todas as outras tentativas estarão condenadas ao fracasso. Escreve Luís Carmelo em Cálice, à página 64: «(o eclipse é a metáfora do rosto: que qualquer lado que se aviste, não é difícil entender a ocultação da cena. E o falso embuste reside no emaranhado com que o visível se enleia ao que permanece suspenso. […]». Entre um rosto e a sua biografia levanta-se uma neblina que só a poesia pode de algum modo dissipar, naquele seu modo manco de clareza. Identifico três assuntos principais que percorrem Cálice: poesia, infância e viagem. Não são assuntos que se interligam, são assuntos indissociáveis.

A viagem tem sempre um componente temporal, não apenas porque há tempo envolvido ao percorrer-se a distância, mas porque no seu horizonte está um desejo de alteração radical do presente, do aqui e agora.

Quem viaja procura de algum modo fugir do presente ou fazer uma pausa dele. Um bom exemplo de quem procura uma fuga do presente na viagem é o caso do narrador do livro do Vasco Gato quando viaja para Itália. Acima de tudo, o que o leva a Itália é uma fuga de Lisboa e da situação em que se encontrava, independentemente de querer visitar alguns lugares específicos. Ele vai para Itália como se pudesse escapar de ser ele ou lhe fizesse bem ter uma pausa de si. Assim, a viagem é uma espécie de forward, de pôr o comando em modo rápido para que passemos rapidamente para aquilo que queremos ver e deixemos este presente que não nos interessa. Mas pode ser apenas uma pausa desse presente, como quem vai de férias para descansar dos dias, não tem de ser algo tão radical como a viagem do narrador de Adius. Seja como for, não há pausas, nem fugas de nós mesmos. Embora a viagem nos possa dar essa ilusão e a ilusão, é sabido, pode ser doce.

Mas quando se regressa a um lugar aonde não se vai há muito, também é o tempo que está envolvido nessa viagem, como é o caso de Ulisses na Odisseia. Mais do que voltar a casa, Ulisses quer recuperar um tempo onde as coisas tinham uma normalidade ou um encanto que deixaram de ter. Uma espécie de viagem a antes do Covid-19. No caso do livro de Luís Carmelo, a viagem assume um carácter mais distorcido do que a de Ulisses, porque se trata de viajar para onde nunca se esteve nem se vai poder estar, a não ser por poesia, isto é, por uma narrativa ou, como neste caso particular, de uma narrativa de uma narrativa. E a viagem também se complica, porque há dois narradores, e não um. Dois narradores que não vão apenas até à sua infância, vão até antes da sua infância, até aos seus antepassados. Mas mesmo só até à infância vivida, deparam-se com o problema da alteração contínua do que narram. No fundo, aquilo que se lê, logo à página 15: «Um comboio em andamento a derivar entre o sonho e a possibilidade». Desde a Poética de Aristóteles que sabemos que a poesia é precisamente este território móvel entre o sonho e a possibilidade, isto é, não um comboio em andamento, mas escrever num comboio em andamento, onde o presente passa depressa e, à medida que a viagem se alonga, o passado se torna mais apetecível. Alguns séculos antes de Aristóteles, Heraclito disse panta rhei, tudo flui, tudo é devir. Com este tudo flui, queria dizer que estamos junto com todas as coisas num tapete de tempo. O tempo leva-nos. Tudo flui. O mundo, o universo é um comboio imparável. E quem não teve a tentação de saltar do comboio ou simplesmente fazê-lo parar? É isto a viagem.

Se a nossa vida é um comboio em andamento, haverá sempre momentos em que nos apetecerá voltar para trás ou saltar para a frente, ir mais rápido que o tempo, ou ainda saltar do comboio. Para saltar para a frente, projectar, tem de se usar a imaginação, para voltar para trás temos de usar a memória. E é sabido que a identidade humana tem os seus alicerces bem ficados na memória. O problema, e que é o dos pontos fundamentais deste Cálice, é que a memória tem tanto de real como qualquer dos textos bíblicos. A memória não é o passado, o que aconteceu, é uma espécie de visita. Algo ou alguém que nos aparece, muitas vezes sem estarmos à espera, e que tem semelhanças com algo ou alguém que conhecemos há muito tempo. Uma visita que se assemelha a um acontecimento vivido. E isto é muito claro em Cálice. Leia-se o modo como começa o livro, onde se vê claramente que estamos sempre a jeito de ser assaltados por uma memória:

«Deve ter sido o segundo dia de Setembro, lembro-me de que a trepadeira não parava de crescer, cobria já uma das janelas do rés-do-chão e as primeiras ramagens com espinhos pontiagudos apareceram a ameaçar-me a varanda do primeiro andar. Foi o que vi, no momento em que abri a janela do quarto, era ainda muito cedo e aquela imagem da buganvília a asfixiar o mundo fez-me gravar o dia na memória.» E é certo que uma buganvília a asfixiar o mundo não aconteceu em tempo algum.

A memória também pode actuar sobre acontecimentos não vividos pelo próprio, como quando lembramos a Revolução Francesa, o que lemos no passado acerca desse acontecimento. Mas no livro de Luís Carmelo o que importa é a memória pessoal, seja ela minha ou a que contaram acerca de mim e da minha família. Aqui não se trata da memória do escritor, mas da memória dos narradores. Ao escritor importa mostra-nos claramente que escrever altera tudo. Porque ninguém se lembra de um acontecimento, ou mesmo o transmite a outro desta maneira que o escritor escreve: «[….] e um céu quase em fundo para abastecer as hortas cheias de água e as ovelhas que corriam atrás das crias. // A aldeia ainda vivia no tempo das subsistências. Das têmporas lhe saía o sol. // A dobradiça da porta principal da casa era uma oração. Uma peça que valia por si própria e que bamboleava. Josué bem dizia que os mitos são portas fechadas por onde se passa a cada instante.» (p. 43).

A este tempo que não fomos, o da história universal, dos mitos clássicos, dos poetas anteriores a nós, junta-se o nosso próprio tempo, individual, que também não fomos, ou por distracção, ou por incúria ou por medo, ou porque quando estávamos a ser não nos dávamos conta de estarmos a ser. Carmelo escreve provocadoramente através dos pensamentos do senhor Fausto, caixeiro-viajante: «porque há-de um homem ter uma história?» (p. 19) E quem diz isto na verdade não estava ali. Leia-se: «Não, o senhor Fausto não estava de facto ali, mas era como se estivesse.» (p. 19) Não estar, mas é como se estivesse, é o melhor modo de dizer a história que se tem, a de cada um de nós. Nós na verdade não estamos, mas é como se estivéssemos. A vida é como se estivéssemos.

É naquele lugar estreito entre estar a ser e dar-se conta disso que desponta a poesia. O tempo da história, esse tempo que nos falta, não surge na poesia como saudosismo, como lamento de outras eras, mas como evidência de que nós somos constituídos pelo que nos falta. Esta é a nossa pátria: a falta, não só do que fomos e do que foi o mundo, mas também falta do que seremos e do que será o mundo. A falta do que somos ilumina o mundo e a história é o seu registo. O movimento da poesia não é o de tentar estar em casa em qualquer parte, mas o de reconhecer que não há casa, mesmo na Pátria, como já Ulisses ou Homero ou os mitos nos mostraram. A poesia sabe como mais nada o pode saber, aquilo que Luís Carmelo escreve à página 18: «A viagem é um tempo que desaparece.» E por isso, também metaforicamente, se costuma dizer que a vida é uma viagem. E é com este tudo que desaparece que se faz uma narrativa.

Gostava ainda de abordar brevemente a questão formal e, para isso, vou repetir uma passagem que citei anteriormente: «[….] e um céu quase em fundo para abastecer as hortas cheias de água e as ovelhas que corriam atrás das crias. // A aldeia ainda vivia no tempo das subsistências. Das têmporas lhe saía o sol. // A dobradiça da porta principal da casa era uma oração. Uma peça que valia por si própria e que bamboleava.

Josué bem dizia que os mitos são portas fechadas por onde se passa a cada instante.» (p. 43). Nesta passagem, além da questão da transformação da matéria da memória, porque a linguagem altera a percepção e o vivido, se o foi, ficamos face à formalidade do livro, que nos dá a ilusão de fragmento. As duas linhas intermédias «A aldeia ainda vivia no tempo das subsistências. Das têmporas lhe saía o sol.» aparecem isoladas e destacam-se, obrigando o leitor a deter-se neles, como se fosse um poema curto. E esta formalidade é fundamental no livro. O livro é escrito em parágrafos tipográficos, que oscilam entre as duas e as 22 duas linhas. Não é de somenos importância. É fundamental para nos fazer pensar na poesia. A ilusão do fragmento ou do poema faz-se sentir como verdadeiro. E este fazer-se sentir como verdadeiro é como na vida. Aliás, e isto é transversal a Cálice, a vida não tem a dimensão concreta da narrativa. Não apenas porque um livro nunca é a vida, porque a vida não tem palavras, ou pelo menos não tem as palavras que se põem num livro, mas porque é da natureza da narrativa a destruição do acontecimento tal como se terá dado. Uma buganvília a asfixiar o mundo.

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