Auto indulto (II)

[dropcap]A[/dropcap] semana passada discutimos a nomeação de Amy Coney Barrett para o Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos e o poder de concessão de perdão do Presidente dos EUA. A questão colocada foi “Pode o Presidente indultar-se a si próprio?”

A magistrada não respondeu a esta pergunta; apenas observou que a lei americana continha uma lacuna sobre esta matéria e que seria necessária uma análise jurídica mais detalhada para se chegar a uma conclusão.

O Comité Judicial do Senado votou a nomeação dia 23 e aprovou-a; o Senado irá confirmar a nomeação mais tarde. Como o Partido Republicano detém a maioria no Senado, Amy Coney Barrett deverá ser eleita sem dificuldade. Depois da nomeação estar confirmada, será de imediato integrada no Supremo Tribunal de Justiça.

No que se refere à questão “Pode o Presidente indultar-se a si próprio?”, existem alguns pontos a salientar. Primeiro, na Constituição americana, nunca é referido que o Presidente não pode ser alvo de um processo criminal. Apenas é referido que o Presidente não possui imunidade absoluta e pode ser sujeito a uma acção legal em certos casos. Como essas circunstâncias não são especificadas, é necessário procurar um esclarecimento.

Em segundo lugar, imaginemos que o Presidente dos Estados Unidos é julgado e condenado por um Tribunal, mas que depois ele se indulta a si próprio. Se isso viesse a acontecer, o concessor do indulto e o indultado seriam uma e a mesma pessoa. O conflito de identidades criaria um conflito de interesse. Por um lado, o Presidente representa o interesse nacional, e a sua condição de cidadão representa, por outo lado, o seu interesse pessoal. O Presidente perdoaria o cidadão, sendo que ambos são a mesma pessoa. Neste sentido, após ter cometido alguma infracção à lei, o Presidente usaria o seu poder para evitar o castigo. Como estaríamos perante um conflito de interesses, a forma mais simples de o resolver é nunca enveredar por esse caminho.

Em terceiro lugar, o quarto parágrafo do Artigo 2 da Constituição Federal estipula que se o Presidente cometer um acto de traição, de suborno, um crime, ou uma qualquer contravenção, pode ser destituído. A destituição passa por um julgamento político. Será movido contra o Presidente um processo político e não um processo jurídico, por violação da lei.

Embora nunca tenha havido na História dos Estados Unidos um caso em que o Presidente concedeu o perdão a si próprio, já aconteceu o Presidente em funções indultar o seu antecessor.

O caso Watergate que ocorreu nos Estados Unidos em 1974, deu lugar à resignação de Nixon da Presidência. A 8 de Setembro desse mesmo ano, Gerald Ford, o novo Presidente concedeu o perdão a Nixon. Numa emissão da Televisão nacional, Ford afirmou: “Esta amnistia é boa para o país, porque a situação em que se encontra a família de Nixon afecta-nos a todos. A sua tragédia nunca teria fim, a menos que alguém lhe pusesse cobro. E percebi que o único a poder fazê-lo era eu. Se posso, tenho de tomar esta decisão.”

Ford usou o seu poder para indultar Nixon dos crimes que lhe foram imputados. Não nos esqueçamos que Ford tinha sido Vice-Presidente de Nixon e, após a resignação deste, assumiu automaticamente a Presidência. Por este motivo, vários sectores da política americana criticaram o indulto. Foi considerado um acto de corrupção. Embora Ford tenha declarado nunca ter feito qualquer acordo com Nixon, o seu círculo político duvidou destas declarações e atribuiu a culpa da derrota nas eleições de 1976 a este incidente.

O Presidente dos Estados Unidos tem o direito de conceder perdão aos cidadãos americanos e o acto de perdão está acima da decisão de qualquer Tribunal. Pode reverter uma condenação. Pode também fazer suspender uma investigação em curso, de forma a que o suspeito não tenha de enfrentar um julgamento. Ford tinha direito à concessão do perdão, mas a História dos Estados Unidos nunca deixa de nos surpreender.

Consultor Jurídico da Associação para a Promoção do Jazz em Macau
Professor Associado da Escola Superior de Ciências de Gestão/ Instituto Politécnico de Macau
Blog: http://blog.xuite.net/legalpublications/hkblog
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