O desmantelamento

[dropcap]P[/dropcap]rimeiro, começa-se pelos móveis grandes. Mas não se tiram logo. Têm de se esvaziar as gavetas e prateleiras. As gavetas e as prateleiras pesam, mas quando estão cheias, tornam-se impossíveis de carregar. Antes de os móveis que não cabem no elevador começarem a ser levados pelas escadas abaixo, temos de abrir gavetas, ver o que há de valor, aquilo com que queremos ficar, separar o trigo do joio, mas sem apego ou sentimento. É uma decisão pragmática. Ficamos com as taças para Champanhe, porque nos lembram as festas de aniversário de tios há já tanto tempo falecidos, mas que outrora fizeram celebraram os seus 40 anos. São mulheres nuas que suportam nos ombros e cabeça a taça propriamente dita. Fica também a caixinha que serviu de porta-medicamento à velhinha tia. Muita coisa tem valor, mas muita não tem. O valor de que se fala é comercial, porque o outro são camadas de tempo, não é sedimento apenas no fundo do rio do tempo que se confunde com a areia e o lodo. As camadas do tempo são o próprio rio que passa sobre as coisas e as alaga. O rio do tempo é apenas suspeitado pelos trabalhadores que vão pegar nos móveis e esvaziar a casa. Para quem lá viveu décadas, lá jantou todos os domingos de décadas de vida, os móveis da casa, as paredes, o tecto e o chão, a janela com a sua paisagem, tudo está habitado pelas vidas das pessoas que viveram nessa casa. As vidas das pessoas mortas não desaparecem quando são cremadas e enterradas.

É viscosa, mantém-se agarrada ao mundo interior de uma casa. Está lá com os sobreviventes que se lembram de como os vivos enchiam uma casa. Enchiam tanto que a casa sem eles está vazia. E saem talheres, terrinas, pratos, pires e travessas, copos para todo o serviço, serviços de chá, chávenas de café e chá. Vai a mesa redonda onde tantas vezes tomamos refeições e se falava do que se tinha passado nessa semana no mundo e nas vidas de todos. Tantas alegrias e tristezas partilhadas a olhar para a ponte 25 de Abril, um dinossauro de metal pintado de cor bordeaux, omnipresente na paisagem de Alcântara. Foi o móvel onde estava a televisão e a mesinha com Cognac. Um olhar inspector vê agora a sala vazia, cheia de pó e sujidade, tiras de papel e plástico, a alcatifa velha, a parede atrás do móvel grande pintada ainda com uma cor diferente das restantes paredes. Ninguém via. Não fazia mal. E foi também desmantelada a cozinha onde eles cozinhavam competentemente. Os bifes com ovo estrelado e batata frita para o sobrinho, mas quando vinha o Verão, o pequeno apartamento no meio de Lisboa cheirava a campo e mar com sardinhas assadas ou bacalhau com alho picado. Todos esses cheiros e aromas assomam da casa inteira e têm uma presença poderosa. O corredor fica vago do móvel gigantesco que servia de apoio para se guardar ainda mantas e roupa que não cabiam nos outros armários. Foi uma lufada de ar fresco quando os homens o tiraram de lá para fazer passar a máquina de lavar a roupa e o frigorífico. Já não há roupa para lavar para o dia seguinte nem comida para guardar no frigorífico.

Da sala de estar, levaram o móvel da televisão, o sofá-cama, as poucas estantes com livros de contabilidade e engenharia. Eram poucos. Não se lia muito para além das revistas que tinham fotografias e reportagens inventadas ou verdadeiras das gentes que lá aparecem. Aquela pequena mesinha ao centro, circular, com o cinzeiro de casa de quem não fuma onde sempre o tio punha as chaves de casa, para saber onde estavam.

Havia na marquise a fechar uma varanda imensa uma arca frigorífica, uma dispensa para garrafas de vinho “fino” e Whiskey. Tudo está a ser levado naquelas horas da manhã, semanas depois do sobrevivente do casal ter morrido. Não tiveram filhos.

Do quarto, começaram por esvaziar a roupa vazia dos velhos tios mortos, sem gente para a vestir ou despir-se dela. Ocos foram os roupeiros com roupa de meia-estação, Outono e Primavera e os casacos pesados para o Inverno de Lisboa ou as viagens que faziam ao estrangeiro: Áustria que era “tão linda”. Foram também as roupas leves de Verão, blusas e um casaquinho fresco. Depois, levaram o móvel do espelho, a pequena televisão que tinha sido posta no quarto, quando a velhinha já estava moribunda. Não prestava atenção ao que via, mas ouvia o terço rezado aos domingos. O velho e pequeno altar com um Santo António ou terá sido um Cristo foi despregado e estava ainda no chão. Também foi com as cadeiras que serviam para se sentarem damas de companhia, enfermeiras e a pouca família que ainda restava, quando vinha de visita. A covid-19 não deixou fazerem-se muitas visitas. Os mantimentos eram deixados à porta do prédio. A enfermeira vinha buscá-los de máscara e luvas, em pleno confinamento. A velha tia não pode receber visitas durante muito tempo e quando as recebeu já não era tempo.

E a cama onde, deitada, me perguntava: “já vais?”, quando eu ia e dizia que vinha depois da parte da tarde para saber dela. Já não me ouvia dizer que regressaria. Adormeceu. A cama tinha sido desmontada e esperava no corredor para se desfazerem dela. Lá dormiram também de dia, porque a velhice nos prega à cama.

Lá terão amado também na noite de núpcias. Nas noites em que se abrasaram, ter-se-ão amado naquela cama. Essas noites de amor e companhia e ternura, essas noites de solidão, frio e velhice até aos ossos não poderem dobrar-se sem dor e desconforto, a vida está nas tábuas arrumadas do que foi a cama deles.

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