Suicídios

[dropcap]A[/dropcap] escritora alemã Sabine Ulbricht propôs-se investigar a relação entre a literatura e o suicídio no seu ensaio «Abismos», partindo do livro de Thomas Bernhard «O Náufrago» e de «Van Gogh O Suicidado da Sociedade», de Antonin Artaud. Para a autora, «[…] o suicídio é um tema existencial por excelência, que desde a antiga Grécia que aparece na literatura. Mas há suicídios e suicídios. Aqueles que importam aqui ver não são os suicídios que advém de uma contrariedade material, como uma súbita falência, ou uma contrariedade amorosa, como a perda do amado ou amada. O que importa aqui ver é a relação entre a arte, o artista e o suicídio […]».

Em Portugal não parece ser um tema que nos interesse particularmente. Curiosamente, o filósofo espanhol Miguel de Unamuno escreveu um livro chamado «Por Terras de Portugal e Espanha» onde se pode ler um texto – hoje editado separadamente, como um pequenino livro – «Os Portugueses, Um Povo Suicida», em que são abordadas várias figuras da nossa história, com Camilo e Antero representando os suicídios nas letras. A análise do amigo de Pascoaes vai mais longe e analisa o comportamento suicida de «esse povo triste, mesmo quando sorri», nós, portugueses. Apesar da questão do suicídio português, para o autor espanhol, estar mais ligado a uma ausência de futuro, a verdade é que temos vários suicidados: Camilo, Antero, Manuel Laranjeira, Sá-Carneiro, Florbela Espanca. E outros menos reconhecidos, em maior número certamente, que podemos ligar à análise de Sabine Ulbricht acerca do suicídio em «O Náufrago», visto a autora ligar o suicídio de Wertheimer com a frustração artística. «Bernhard faz com que Wertheimer se suicide porque o Glenn Gould existe ou, na tese mais trágica, porque não pode ser o Glenn Gould.» A escritora alemã não esquece o título do livro e as relações com o livro «Naufrágio com Espectador», de Hans Blumenberg, que mostra como a metáfora do naufrágio está amarrada à existência, pelo menos desde Tales de Mileto, esse que é considerado o primeiro filósofo. Diz-nos Blumenberg, que a despeito do humano ser um habitante da terra, a metáfora da existência ligada ao mar e à situação de embarcado surge-nos já na Grécia Antiga e torna-se comum na reflexão filosófica ao longo dos séculos. Contudo, a metáfora que ficou mais conhecida na história do ocidente foi a de Lucrécio em «De Rerum Natura / A Natureza das Coisas».

Aqui, Lucrécio traça uma metáfora do naufrágio com espectador, cujos elementos constituintes são o navio, a sua tripulação, o timoneiro e o mar, encontrando-se os navegantes em perigo de vida. A este cenário é acrescentada a figura do espectador que está em terra firme –na praia – e que observa, à distância, a calamidade do naufrágio. Neste sentido, Lucrécio fazia a defesa de um viver em ataraxia, isto é, fazia a apologia de que devíamos viver afastando de nós as afectações, as paixões. Assim, estava bem de ver, que o naufrágio não era a existência, mas um particular modo de a efectivar, que seria o entregar-se aos prazeres desmedidos e às paixões. Não podemos esquecer que Lucrécio era epicurista e defendia que o melhor que se podia alcançar na vida era ser espectador dela. Não devemos esquecer que os epicuristas além de condenarem os excessos condenavam também qualquer actividade política, pública. Devíamos abstermo-nos de participar da vida. A vida foi feita para o espectador. Para aqueles que leram Pitágoras, lembrar-se-ão da poderosa metáfora que usa ao defender a vida contemplativa, ligando isso à filosofia. A fonte é Diógenes Laércio, leia-se: «A vida, dizia Pitágoras, é como um festival; tal como alguns vêm ao festival para competir, outros para fazer o seu negócio, enquanto os melhores vêm como espectadores, assim os homens servis vão à caça de fama ou de lucro, e os filósofos, da verdade.» Fica aqui, para sempre na história ocidental, a ligação estreita entre procura de conhecimento e verdadeira vida. E esta vida é a do espectador. Isto será recuperado por Epicuro, e será o centro do seu pensamento ético. Embora não fosse neste sentido que Lucrécio usasse a metáfora do espectador, ela foi também usada para defender o ponto de vista de Epicuro; a de uma vida longe da acção. Acção que é a do homem que embarca.

Sabine Ulbricht escreve ainda acerca das interpretações de Pascal, de Schopenhauer e de Nietzsche acerca da metáfora do naufrágio, tal como aparece no livro de Blumenberg, para então escrever: «Mas a metáfora da existência em ligação a náufrago, em Bernhard, contrariamente a Nietzsche [para este somos todos náufragos, mas podemos alcançar terra firme tornando-nos naquilo que somos, criando os nossos valores] , não tem terra firme a que se chegue. Não há a possibilidade de transfiguração dos valores, de construir novos valores, porque a existência é assim mesmo e não admite inovações ou transfigurações. Assim, para Bernhard, existir é ser náufrago e sem possibilidade de chegar a terra firme, a não ser talvez com o génio, como é no livro o caso de Glenn Gould, mas que se estende a Horowitz, a Mozart, a Bach, a Schoenberg, a Berg, a Mahler, a Handel… Mas para além ou aquém do génio, toda a existência é a de um náufrago em alto mar. É assim com o narrador e é assim com o Wertheimer, embora de modos distintos. Ambos são náufragos, mas cada um deles vive a situação à sua maneira. O Wertheimer desiste de continuar a nadar, a manter-se à tona da existência, assim que percebe que não há terra firme a que chegar. O narrador embora saiba que não há terra firme a que chegar não desiste de se manter à tona, pois entende que existir é manter-se à tona, sem a ilusão de uma terra firme a que chegar. É o ponto de vista mais aterrador da existência, a de que existimos para nada, a não ser para as migalhas que o dia traz. Assim, mais do que Nietzsche, é a Schopenhauer que Bernhard e o seu livro mais devem. Em a metáfora do naufrágio, Schopenhauer torna o náufrago espectador de si mesmo.»

Adiante no livro, a autora alemã escreve que, «[…] partindo de um ponto de vista estético, Bernhard descreve um profundo drama existencial, o de alguém que nunca esteve bem consigo e com o mundo, que nunca se viu a si mesmo, mas apenas uma projecção que fez de si mesmo. Se isso é suficiente para levar ao suicídio é outra questão. No modo como Bernhard descreve, sim. O náufrago deixa de nadar, por não conseguir ver terra firme a que se possa chegar. O suicídio advém de não se ver futuro. Advém de que a vida é um eterno presente naufragado em alto mar, sem possibilidade de chegar aonde quer que seja, embora este futuro não seja um vínculo temporal com acontecimentos materiais, e sim com uma vontade estética. Não é falta de um futuro concreto, material, mas a perda irremediável – é assim que é sentido – da possibilidade de se viver segundo um sentido estético»

No fundo, segundo Ulbricht, o suicídio acontece por um curto-circuito com o futuro. E nos artistas esse curto-circuito é o rompimento com uma vida para a estética. O existente não deixa apenas de se ver no futuro, de não conseguir imaginar-se adiante, não consegue imaginar a sua vida sem uma vivência plena na estética, que julga ter terminado para sempre, seja por que razão for. Literalmente, a vida acabou, deixa de nadar. «Wertheimer mata-se porque vê que a estética deixa de fazer sentido na sua vida. E, sem isso, não vale a pena viver.» Continuaremos na próxima semana a seguir este livro de Sabine Ulbricht.

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