O Artista Assassino

A fórmula é relativamente simples: há muita oferta e pouca procura. Esta é a explicação de lógica de mercado que nos dizem ser “a lei natural das coisas”, à qual Gramsci chamava hegemonia cultural (desculpem, mas estão a passar muitas imagens do Avante na televisão). Depois, há a perspectiva da ambição, do desígnio e da excelência que é a fundação da motivação. A ambição pode ser avidez e pode ser cobiça mas pode, também, ser aspiração, desejo de concretizar, vontade de atingir. É como os dois lados da moeda da inveja, aquela inveja em que não prejudicamos ninguém e em que nos tentamos superar a nós próprios perante o esplendor de alheios e a outra, a que nos diz que, para se ser melhor do que alguém, é preciso destruir esse outro. Nos sites de citações procuro o que dizia Saramago sobre a inveja e só encontro isto “Temos que nos convencer de uma coisa, que o mais importante no mundo, pela negativa, e o que mais prejudica as relações humanas e as torna difíceis e complicadas é a inveja” mas eu lembro-me de uma outra versão que ouvi de Saramago sobre a inveja e que parece não ter sido ainda colectada pelos citadores virtuais desta internet e por isso, não vou citar, limito-me a explicar que o ouvi dizer que a inveja tinha tido um papel fundamental na carreira do Nobel, segundo o qual, era a inveja que o fazia querer superar-se, ir mais além, olhar para o lado como quem pensa “percebo a tua perspectiva, estou bem danado de não ter sido eu a lembrar-me disso primeiro, mas acho que se abriu uma nova linha de pensamento que vou explorar a partir daqui” (citação original deste texto, por esta autora).
Vou recorrer a outra referência. Desta vez, uma lenda da mitologia grega para ilustrar a minha perspectiva sobre este tema. O “Artista Assassino”, Dédalo (Daídalos), é conhecido, sobretudo, como o engenhoso construtor do labirinto de Creta que reteve o feroz Minotauro. Conta a lenda que, a certa altura, Dédalo, o mais inteligente, o mais criativo de Atenas, ensina tudo o que sabe ao seu sobrinho, Perdiz, que demonstra ter uma aptidão inigualável. Sob a orientação do tio, Perdiz inventa coisas extraordinárias como a roda do oleiro, a serra e a bússola. Mas o tio, mestre, não consegue conter uma irascível inveja que o assombra pelo aprendiz que o supera. Acaba, assim, por planear o seu assassinato, convidando-o para um passeio ao topo do templo de Atenas, onde o empurra com intuito de o matar. Atenas, no entanto, deusa que privilegia o engenho em detrimento de ignóbeis impulsos deletérios, vê Perdiz cair e transforma-o num pássaro. Dédalo é preso pelo seu crime. Assim nasce o Artista Perdiz.
A Perdiz. Pássaro que não constrói o seu ninho nas árvores nem consegue voar no céu mas que utiliza antes tocas no solo, evitando altitudes.
A inveja deve ser uma fonte simultânea de aspiração e inspiração. E não, não é um problema procurar poder e prestígio através da arte. Contudo, este deve ser encontrado na sua elaboração e não nos níveis elevados, superfícies inalcançáveis, altitudes e elevações que não sejam provenientes do mero ofício. O artista, como a Perdiz, deve procurar a sua força criativa em tocas, o seu engenho em buracos, a sua sagacidade em covis. Esta é a única forma de sobreviver ao Artista Assassino, o destrutivo, aquele que não canaliza a inveja para a sua criação.

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