Tresler o mundo

[dropcap]O[/dropcap] escritor chileno Jaime Cruz criou uma desconcertante personagem em «Tresler o Mundo»: Carlos García. Cruz começa a sua narrativa assim: «Desde muito novo, Carlos García mostrava um talento ímpar para tresler o mundo. Nada do que via parecia ser aquilo que estava a acontecer na realidade. E as pessoas com quem estabelecia relações pareciam ser todas elas muito diferentes do que ele pensava que eram. O que para muitos poderia ser uma aprendizagem, ao dar-se conta de que erraram no seu juízo acerca dos outros e dos factos mudavam ou precaviam-se no futuro, para Carlos isso não só não acontecia como parecia acentuar-se. Como se tresler fosse o seu destino.» Faça-se aqui um parêntesis para clarificarmos o que está em causa subterraneamente. Em «Os Hinos de Hölderlin», Heidegger escreve: «O que se passa com o dizer “poético”, acontece de forma análoga – e não igual – com o dizer “pensante” da Filosofia. Numa verdadeira aula de Filosofia, não importa realmente o que é dito de uma forma imediata, mas sim o que é calado nesse dizer. Por conseguinte, podemos escutar e apontar aulas de Filosofia sem dificuldade, e mesmo assim podemos passar o tempo a ouvir mal – e isso não no sentido aleatório de compreendermos de modo incorrecto certas palavras e certos termos isolados, mas no sentido fundamental de ouvirmos mal na essência, de nunca repararmos de quê e para quem realmente se fala.» Ora, isto a que Heidegger se refere como acontecimento numa sala de aulas de Filosofia é o que acontecia com a vida de Carlos García, sempre e de cada vez que lia – ou escutava – os acontecimentos ou se aproximava de alguém de modo a estabelecer uma amizade. Ao longo do livro, nenhuma das pessoas com quem Carlos tenta estabelecer amizade se tornam amigos dele, pelo contrário, alguns até sentiam prazer em desprezá-lo, ou através de nunca lhe responder aos telefonemas ou aceitar os seus convites. E das poucas vezes que alguém se aproximava dele com sinceridade, Carlos dizia para consigo mesmo «Este deve pensar que me engana! Por acaso julga que sou parvo?» Talvez o mais trágico desta existência não seja o desprezo com que os outros o tratam, mas a necessidade lírica de que aquelas pessoas gostem dele. Aquelas pessoas que precisamente não gostam. E isto aconteceu desde a escola até ao emprego nos correios e aos «amigos» que encontrava nos cafés. Este «tresler o mundo», como escreve o autor, e que encontra eco nas palavras de Heidegger acerca de uma aula de Filosofia, não é apenas algo que acontece a Carlos García, mas a todos nós, de um modo mais ou menos acentuado. Escreve Jaime Cruz: «Talvez seja preciso não sentirmos os outros e os acontecimentos tão perto do coração, para que o acto de tresler não tome completamente conta de nós.» O que está em causa, para Jaime Cruz, através desta personagem trágica, não é apenas a característica humana universal para não nos darmos conta dos acontecimentos e dos outros, mas a vontade de querer que os outros e os acontecimentos sejam como nós os vemos. Carlos quer que gostem dele, não porque se sente só ou ache que merece, mas porque gosta dos outros. Gosta genuinamente dos outros. E gosta do mundo. Por isso «lê» determinados acontecimentos como ele gostaria que fossem, no fundo do modo como ele gosta do mundo.

Numa entrevista a um jornal francês, Jaime Cruz responde acerca do que o levou a criar Carlos García: «Eu e os outros. Eu, porque tenho medo que não gostem de mim. Quando deixam de me responder ou de atender o telefone entro em depressão, por vezes profunda. Apesar de tudo, não tenho as defesas de Carlos, que continua a pensar que o modo como o tratam não deriva de o desprezarem, mas porque estão ocupados ou estão tristes e não querem que ele os veja assim. Eu não. Eu vejo claramente que não gostam de mim e sofro profundamente. Os outros também me influenciaram, pois muitos também sofrem pelo meu silêncio. Carlos é este desencontro que acontece entre os humanos. Este desencontro define mais a nossa existência do que o caminhar para a morte.»

Carlos García continua a caminhar pelos dias, acreditando que «lê» os acontecimentos e os outros, não suspeitando que está cabalmente enganado. Mas o que seria o contrário disso? O que seria estar cabalmente certo acerca dos acontecimentos e dos outros? Seja como for, aquilo que salva Carlos é a sua forte crença em si mesmo, na sua capacidade de se dar conta do «à sua volta», contrariamente ao escritor que criou a sua personagem, como disse numa entrevista. Como em tantas coisas da vida, neste caso haverá um meio termo? Será que o caminho certo para nós é entre o autor e a sua personagem? Não o podemos saber. Mas Carlos García continua a perturbar-nos, mesmo vinte depois da morte do seu criador. Continuamos a ver no comportamento dele, que sabemos muito pouco não só acerca de nós e dos outros, mas principalmente do efeito que causamos uns nos outros.

A conhecida crítica literária argentina Cristina Massa conduziu a sua reflexão por um caminho radical, afirmando que se alguma coisa o livro nos ensina é a de que temos de partir do princípio de que não podemos esperar nada de ninguém. Escreveu: «No livro, o erro dos outros é semelhante ao de Carlos, com a única diferença que este sofre mais com isso. Aquilo que o livro mais nos ensina, acima de tudo, é ficarmos a ver que não é só no momento de morrer que estamos sozinhos, também somos sós na vida. Mesmo quando julgamos que alguém nos compreende ou que alguém nos estima, esses juízos não passam de erros semelhantes ao de Carlos García.» Independentemente do modo como se possa ler o livro, a verdade é que a sua leitura não nos deixa indiferentes. Apetece terminar com uma passagem de Georg Steiner, do seu Linguagem e Silêncio, que se aplica exemplarmente a este livro de Jaime Cruz: «Ler bem é assumir riscos. É tornarmos vulnerável a nossa identidade, a nossa posse de nós próprios. […] Quem tenha lido a “Metamorfose” de Kafka e possa a seguir olhar para o espelho sem inquietação talvez seja capaz de ler caracteres impressos, mas é analfabeto no único sentido que conta.”

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