Visitas para jantar

[dropcap]A[/dropcap]doráveis convidados domésticos. De todos os dias.

Há um lamento animal que sua da pele, quando menos se espera. Do estoicismo, que esse é humano. Um uivo à noite. Aprendi com eles. E que mesmo a letra que não se pronuncia tem uma anatomia própria.
Impreterível sonho. Insuficiente o que as manhãs trazem em si. Inventar tardes que sejam mais, noites de plenitude, um olhar refrescado para o dia de amanhã. Uma orla de ilusões quase realidade. Não inventar o que não existe, mas o que pode vir. Esperar e desejar. O que nunca é a mesma coisa. O nome e o olhar. Mas que seja, pelo menos a coisa igual a si própria. Contra as desnecessidades de sentido. Intermitências como interruptores que avariam.

Haverá sempre quem entenda mal, quem julgue o mistério excessivo e quem culpe de realidade crua, quem nos tema a crítica ou a melancolia. Quem julgue pelo excesso a fantasia ou a racionalidade, o dramatismo a serenidade, a intensidade e o frio. Ou, na aparência distante, a secreta garra férrea com que tudo nos marca.

Haverá sempre uma coisa e o seu contrário no olhar que se assesta sobre nós. Numa alquimia de opostos. Há que fazer a síntese. Por cada qualidade que nos dizem há sempre quem a sonhe contrária. O problema é nunca sabermos com clareza onde estamos nos outros e onde estão os outros.

Este desgastante casamento. Com os outros, com o olhar dos outros. Dependência de migalhas e gestos a brindar à ausência. Tanto e tão pouco às vezes numa só vez. Mas chegar àquele ponto, finalmente, em que cada coisa já não coloca questões sobre ser, mas sobre os outros e, um dia, nem isso. Têm que estar lá. Com todo o seu dramatismo e intensidade. No lugar que é seu. Para o melhor e para o pior. Até que a morte nos separe.

Distanciação social. Expressão absurda do figurino actual. A Vogue sobre a mesa de café. Mas em casa não há distância possível e sentamo-nos todos os dias à mesa com os nossos monstros, os nossos fantasmas, os desejos, as recordações. No recolhimento em que estamos confinados ao interior da cabeça. E às vezes perdemo-nos ou encontramos na amplitude de tantas latitudes. Longitudes ilusórias. E estas visitas de casa.

Esses convidados domésticos, queridos, que nunca deixam de pedir o jantar e esperam mesmo por horas pouco convencionais. Mas estão sempre lá a fazer companhia.

Passados os primeiros momentos de cerimónia, estão eles já tontos de bebidas secretas, ruidosos e de cotovelos sobre a mesa. A servirem-se com as mãos. Mas eu gosto. De os ver lamber os dedos – alguns até com uma delicadeza infinita, a da timidez que nunca fica mal – e mangas arregaçadas, os que as têm porque a alguns a pelagem não o permite. Uma barulheira. Animada, inquietante ou irritante. Coisas de família. A tentar que nunca seja angústia para o jantar. Mas uma outra coisa em aberto. E com conforto a dar o título.

Rejeitar as trevas, como a luz esmagadora. Tudo a seu tempo. A intensidade de um meio-dia a pique, não se quer às cinco da tarde. Como as trevas ao amanhecer. Tudo deve fluir a um ritmo que é seu. Tudo é bom. A penumbra de um crepúsculo lento. Há que deixar vir cada coisa ao seu lugar. Anjos de um lado, unicórnios do outro. O boneco chorão envelhecido de poeira, também. Talvez a meio. Há que pensar o protocolo. À mesa.

Restrições alimentares que a delicadeza torna subtis e atendidas. Sorrisos e sobrolhos franzidos. Olhos esquivos ou impolutos. A cerimónia é densa e longa e deve contentar a todos. Poiso travessas ornamentadas de folhas frescas com pernas de frango e asas, fritas acerejadas, com aquele toque avinagrado no final. O mundo doméstico também se divide entre quem gosta de pernas e quem gosta de asas. Depois da sopa fria porque é verão, ou antes, que façam como preferirem.

E depois, já todos à mesa e etérea sou eu. Encantada ou presa de encantamento. Paralisada de existência discutível. Vejo-me à mesa e vejo-me a atrapalhar-me na porta com a travessa enorme. O cesto crispy comestível e os panadinhos com surpresas de camarão e aqueles pimentos imprevisíveis. Rio para dentro e espero ansiosamente para ver a quem calha o insuportável picante esperando a rezar que seja ao unicórnio querido que nunca vi corar. Ou atrapalhar-se e tossir. Uma coisa linda de se ver.

E todos os monstros estão serenos e bonitos a retirar o pano de linho da argola de prata e a colocar nas pernas, cada um no seu modelo de colo, mas civilizados e benignos porque à mesa manda a etiqueta. E portam-se bem. Cada um precisa do seu sítio da casa onde pernoitar depois. Quando o cansaço se instalar e o sono, a única fuga possível. E quando já dormem, fico à mesa a lembrar os que vieram o que disseram se comeram bem. Só, mas não completamente. Do outro lado a ovelha negra que fica para ajudar a levantar a mesa e que é a minha preferida porque é diferente mas sempre a que emperra a contagem para o sono final.

E fico a lembrar os detalhes. O Adamastor que não chega a horas – um problema para o arrumar à mesa com aquele tamanho. Sentado, depois, de lado sem espaço para as pernas. A pisar a asa de um e a crina do outro.

Adiante. Para ele era um gelado de espuma doce para limpar o palato, à chegada, das intempéries do ofício, a ver se se tinha quieto e calado. Para não incomodar os vizinhos com os rugidos do costume. Vem muito para afundar inutilidades e afogar mágoas. Mas nunca se sabe como reage a uns copos a mais e às espumas e vapores das sobremesas de cozinha molecular que não sabe com que talher abordar nem eu. Mas olho-o sempre atentamente e, num assomo de melancolia, fico na dúvida se não será o tempo. Cronos. Que não costumava chegar atrasado nem fora de horas, mas agora cada vez mais, ou antes da hora. Observo-o na dúvida. Mas é mesmo o tempo, talvez. E nunca está a mais.

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