Japão | HRW denuncia abusos físicos e sexuais a atletas menores

Mais de 800 atletas japoneses revelaram à Human Rights Watch que foram vítimas de agressões físicas e verbais, bem como de assédio e abuso sexual, quando treinavam para os Jogos Olímpicos e Paralímpicos. O relatório, tornado público esta segunda-feira, surge numa altura em que o Japão se prepara para receber a competição mundial em 2021

 

[dropcap]A[/dropcap] organização não governamental Human Rights Watch (HRW) publicou esta segunda-feira um relatório demolidor sobre alegados casos de abusos físicos e sexuais no Japão cometidos contra atletas olímpicos menores de idade. O relatório foi feito com base em experiências documentadas por mais de 800 atletas que dizem ter sido abusados no passado. Além das entrevistas pessoais feitas a 50 pessoas, foi também realizado um inquérito online, a nível nacional, com 757 respostas não apenas de atletas olímpicos, mas também de paralímpicos.

O relatório de 67 páginas, intitulado “‘I Was Hit So Many Times I Can’t Count’: Abuse of Child Athletes in Japan’” [Fui agredido tantas vezes que não consigo contar: O abuso de atletas menores no Japão], “documenta uma história de punição corporal no desporto no Japão, conhecido como taibatsu, e revela casos de crianças atletas abusadas em escolas, federações e entidades de desporto de elite”.

O termo taibatsu surge associado ao facto de a “violência física como uma técnica de treino ser uma longa tradição no desporto japonês, muitas vezes vista como essencial para atingir o nível de excelência na competição e no carácter pessoal”. No entanto, “esta tradição perigosa tem tornado especialmente difícil a erradicação dos abusos físicos da área do desporto”, uma vez que “treinadores, pais e mesmo alguns atletas incorrem no erro de pensar que o abuso físico no desporto tem o seu valor, e as crianças sofrem com isso”.

A HRW descreve que há casos de “depressão, suicídios, deficiências físicas e traumas que resultam desses abusos”. “Atletas japoneses de mais de 50 desportos relataram abusos que incluem murros na cara, pontapés, agressões com objectos como paus de bambu usados na prática de kendo, privação de água, agressões com raquetes, além de serem sexualmente abusados ou assediados”, lê-se ainda.

Um dos relatos é de Daiki A., de 23 anos, atleta da região de Fukuoka. “Fui agredida tantas vezes que não consigo contar… éramos chamados pelo treinador e esbofeteados à frente de toda a gente. Estava a sangrar, mas ele não parava de me bater. Poderia dizer que o meu nariz estava a sangrar, mas ele não parava.”
Minky Worden, director de Iniciativas Globais da HRW, declarou que “durante décadas as crianças no Japão têm sido brutalmente agredidas ou abusadas verbalmente em nome da obtenção de troféus e medalhas”.

O responsável exige, portanto, uma mudança profunda. “Uma vez que o Japão prepara-se para receber os Jogos Olímpicos (JO) e Paralímpicos em Tóquio em Julho de 2021, as atenções internacionais constituem uma grande oportunidade para alterar leis e políticas no Japão e para, em todo o mundo, proteger milhões de crianças atletas”, apontou Minky Worden.

Além do inquérito online e entrevistas, a HRW também fez um trabalho de monitorização de reportagens sobre abusos sexuais de crianças na área do desporto, além de ter contactado federações desportivas, feito entrevistas a académicos, jornalistas, pais e treinadores, bem como encontros pessoais com representantes do Governo e das federações desportivas.

Suicídio em 2012

O relatório da HRW dá conta que alguns dos abusos terão ocorrido em 2013, quando o país preparava a candidatura para receber os JO e Paralímpicos, entretanto adiados para Julho de 2021 devido à pandemia da covid-19. Nesse ano, foram divulgados vídeos de abusos contra atletas de elite, além de terem sido reportados suicídios de atletas menores de idade. À altura, “agências desportivas falaram publicamente da necessidade de proteger as crianças na área do desporto”.

Em 2018, na prefeitura de Aichi, foi divulgado um vídeo em que vê um treinador de baseball a esbofetear, pontapear e desferir murros em jogadores da sua equipa. Apesar da criação de linhas de apoio para este tipo de casos, a HRW refere que “estas reformas são apenas ‘linhas de orientação’ opcionais ao invés de regras devidamente implementadas”, com pouca monitorização. Além disso, não existem estatísticas oficiais do número de casos de abuso reportados nem tratamento das queixas recebidas.

Em 2012, um jogador de basquetebol, de 17 anos, cometeu suicídio na cidade de Osaka, depois de ter sofrido vários abusos do treinador. Meses mais tarde, a treinadora da equipa feminina de judo japonesa abandonou o cargo na sequência de acusações de que teria abusado fisicamente das atletas na preparação para os JO de Londres.

Os casos de abuso a atletas menores no Japão constituem, segundo a HRW, uma violação às leis que criminalizam o abuso sexual infantil, as leis de direitos humanos a nível internacional e o regulamento do comité dos JO.

Tudo normal

Apesar das centenas de relatos, a HRW aponta que “os abusos de crianças no desporto continuam a ser aceites e até normalizados em muitas áreas da sociedade”, sendo “difícil para muitos jovens atletas apresentar queixa contra um oficial da área ou contra o seu poderoso treinador”. Além disso, “as escolas e federações raramente punem treinadores abusivos, permitindo muitas vezes que continuem a treinar”.

Kanae Doi, director da HRW no Japão, declarou que “as federações desportivas no Japão têm permissão para estabelecer os seus próprios sistemas de monitorização de abuso e de abusadores – e muitas delas escolhem simplesmente não implementar esses sistemas”. “Isto expõe as crianças a riscos inaceitáveis e deixa os pais e atletas com poucas opções para apresentar queixa ou procurar defesas contra os abusadores”, acrescentou o responsável.

O problema dos abusos sexuais cometidos contra atletas olímpicos não é exclusivo do Japão, com casos amplamente reportados em todo o mundo. A HRW destaca o caso do médico olímpico norte-americano Larry Nassar, acusado de inúmeros abusos sexuais, em que uma das vítimas foi a ginasta Simone Biles, que ganhou 4 medalhas de ouro em Jogos Olímpicos.

“Os abusos infantis na área do desporto são um problema global com falta de sistemas unificados e claros que identifiquem a violência. O fardo de reportar um abuso recai muitas vezes sobre as vítimas, enquanto os sistemas que reportam os casos são opacos, inadequados e sem resposta”, descreve a HRW.

Takuya Yamazaki, advogado do comité executivo da World Players Association, disse que “uma das razões pelas quais é tão difícil lidar com casos de abuso é que os atletas não são encorajados a ter uma voz”. “Tal como muitos dos corajosos atletas que estão a começar a falar mais sobre os seus direitos, os órgãos desportivos devem revelar coragem para lidar com o passado, isto se o desporto é uma força verdadeira em prol do bem”, acrescentou o responsável da associação que trabalhou de perto com a HRW na elaboração deste relatório.

As recomendações

A HRW faz ainda uma série de recomendações às autoridades japonesas no sentido de ser implementada uma nova lei que “de forma explícita elimine todas as formas de abuso por parte de treinadores contra atletas menores em organizações desportivas”. Essa lei deve também “delinear os direitos dos atletas, incluindo o direito de praticar desporto sem qualquer tipo de abuso”. A HRW pede também que seja dada formação a todos os treinadores e atletas relativamente a este problema, além da possibilidade de qualquer pessoa poder reportar casos de abuso contra atletas.

As recomendações vão também no sentido de se criar um Centro Japonês para o Desporto Seguro [Japan Center for Safe Sport], enquanto “órgão administrativo independente virado para o abuso infantil no desporto” que seria responsável por lidar com casos de queixas de abusos, além de implementar padrões, medidas preventivas e realizar investigações.

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