Procurador, entre outros encargos, juiz

[dropcap]N[/dropcap]o relatório da Comissão para propor reformas às atribuições do tribunal da Procuratura narra-se em relance o período entre os finais do século XVIII e meados do seguinte: “Em Macau, o andar do tempo obrigou gradualmente o Procurador a exercício mais atento e especial. A chegada de muita gente da China para aqui residir num crescendo da comunidade chinesa, levou as suas autoridades, que até aí se continham em regular do seu território o comércio que fazíamos, deliberaram acompanhá-la e administrar-lhe aqui justiça; e deste modo se originou, em Macau, o concurso de duas jurisdições com diferente nacionalidade, o qual, não tendo existido nos princípios desta colónia portuguesa, não obstante se prolongou depois por muito tempo.

Deste facto ressalta bem clara a segunda época da Procuratura com respeito à sua alçada ou competência nos negócios sínicos, que de então se tornou a principal feição da sua existência. O Procurador que, nesta parte, era só negociador nomeado pela cidade para a boa conciliação dos interesses dela com o amigo trato do país vizinho, ficou sendo além disso, e cada dia mais, ora juiz de paz, ora juiz de instrução de todos os pleitos que se davam entre os cristãos e os chineses. A natureza destes deveres o foi sucessivamente obrigando a constituir amiúdo a sua repartição em tribunal, que, por mais tolerante e menos custoso, atraia maior número de litigantes que o do mandarim da cidade, ainda nos casos em que era este mais competente segundo o prática recebida. Viram sempre com gratidão os moradores chineses, nessa entidade, o árbitro indispensável em meio da diferença de carácter e usos que os separava dos europeus, com quem aliás tinham interesse em conviver. [Na China governava a dinastia Qing da minoria manchu proveniente do Norte].

Também por sua parte se não afrontavam os mandarins com se tornar em várias épocas excessiva a acção dos procuradores, porque em certo modo os consideravam autoridade sua dependente, ou homogénea e patrícia, da qual opinião raras vezes foram desiludidos, se algumas. Desculpava-se este indefinido estado de coisas com as circunstâncias do tempo e as ideias do maior número, pelo que se, em tão longo período, não ganhou a Procuratura as condições de forma que seriam para desejar e de que absolutamente carece a justiça ainda no seu mais excepcional ministério, – é certo ter adquirido o prestígio que dá a tradição.”

Continuando no Relatório de 1867: “Dá-se nesta colónia uma particularidade em que inteiramente se extrema de todas as outras da coroa portuguesa: e é ela que em território nenhum, igual ou ainda muito superior em extensão, nos achamos em meio de um povo indígena, trinta vezes mais numeroso, com civilização tão adiantada e ao mesmo tempo tão diferente da nossa. (…) A imposição de todas as leis europeias nada mais faria do que restituir os chineses ao propinquíssimo território, onde o seu governo mantém, solitário e cioso, os costumes e preceitos de vinte e cinco dinastias. Ora considere-se que esta população, que assim nos vence em número em tão breve circuito e nos opõe tão radicada diversidade de usos, é, incomparavelmente mais do que a nossa, activa, industriosa, dada ao comércio, e pleiteante; considere-se também que não poucas vezes a superstição e o vício lhe acometem os bons instintos; e ver-se-á quanto andaria iludido quem, pela comparação material dos limites, estimasse os requisitos da administração de Macau.

Devem as leis acomodar-se à índole e costumes do povo para que são feitas, sempre que tal condição não repugne aos princípios absolutos da civilização e da justiça. Querer, num país, aplicar sem distinção ou emenda, todos os preceitos que noutro mui diferente vigoram com boa razão, e condená-los a uma execução forçada, morosa, se possível, e prejudicial. A ciência do legislador em tal caso está em saber conservar o que, sendo universalmente justo, é absolutamente aplicável, e prover de diferente modo e com acerto nos assuntos que pedirem especial regímen, de forma que no produto desta selecção não haja deficiência nem sobras. (…) Sempre no governo das nossas colónias temos buscado atender àquela necessidade.”

Imposto legaliza o ópio

Na Europa, as antigas e empedernidas instituições políticas absolutistas com a Revolução Francesa de 1789 desmoronaram-se e o monopólio das grandes companhias de privilégio estatal com o liberalismo, dominante a partir da década de 1830, deu acesso aos “comerciantes livres que, em regime de licença ou em contrabando, acabarão por dominar os sectores em que se envolvem”, segundo Ângela Guimarães, e são eles, “os comerciantes da country trade, que assumem uma importância cada vez maior na percentagem do comércio” e no “uso dos mecanismos fora-da-lei.”

Em 1830, era Governador de Macau João Cabral de Estefique (1830-1833) quando caiu drasticamente a posição da cidade como centro de baldeação de ópio, mas continuou a realizar-se o seu contrabando. Nesse ano importou-se 1883,25 caixas, tendo as autoridades cobrado um ‘imposto alfandegário’ de 16 taéis de prata por caixa, legalizando assim o contrabando de ópio. Cada caixa variava entre 63 e 71 kg. Com este imposto as autoridades portuguesas obtiveram 30.132 taéis de prata, quase metade da receita total da alfândega de Macau, calculada em 69.183 taéis. Já em 1834 o volume era de vinte mil e quinhentas caixas e em apenas quatro anos subirá para as quarenta mil caixas. Ano que segundo Guo Weidong, “as autoridades portuguesas de Macau reduziram o imposto alfandegário do ópio para 8 taéis de prata por caixa, mas, como a importação atingiu as 3283,88 caixas, a receita subiu para 26.536,16 taéis”.

Jacques Gernet refere, na China entre 1800 e 1820 entraram dez milhões de liang (ou tael, 37,72g, uma onça de prata), quantia igual sairia em apenas três anos, entre 1831 e 1833.

Em substituição da prata, desde 1781 a Companhia Inglesa das Índias Orientais (EIC) trazia como moeda de troca apenas ópio e quando em 1796 a China proibiu a sua importação, decidiu fazer de Macau o centro para o comércio dessa droga. Em 1816, com a abertura do comércio livre, começou a Companhia a ter a concorrência do country trade que, comercializando em contrabando o ópio resultou num crescimento das quantidades que entravam clandestinamente na China, no aumento do preço e em grandes fortunas para os contrabandistas, tanto ingleses, como alguns portugueses de Macau.

Em 1833, “o parlamento inglês aboliu o monopólio da East Índia Company e liberalizou o comércio em Cantão”, segundo H. Gelber. Assim, na China a 22 de Abril de 1834 os privilégios da Companhia Inglesa das Índias Orientais na China foram extintos e suspensa a sua sucursal chinesa, refere Marques Pereira e J. Gernet completa, “devido ao progresso do contrabando privado de ópio.” Sem o monopólio do ópio a Companhia transferiu a parte comercial para a Coroa Britânica, que nomeou um Superintendente chefe do Comércio Britânico na China, o lorde Napier.

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